O PARÁ fecha o ano de 2023 como líder na produção nacional de cinco importantes culturas: abacaxi, açaí, cacau, dendê e mandioca. O Estado aparece em destaque também na produção de pimenta-do-reino atingindo o segundo lugar no ranking nacional. Também está entre os maiores produtores do Brasil em coco-da-baía e limão (ambas em 3º lugar). Os dados fazem parte da Produção Agrícola Municipal (PAM) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE)/2023. Regionalmente, os dados foram sistematizados pelo Núcleo de Planejamento e Estatísticas da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap).
Entre as culturas agrícolas, cujo Pará aparece no topo, duas se destacam com uma produção bem superior quando comparado com outras unidades federativas do Brasil, como ratifica o levantamento. É o caso do açaí – com 93,87% da produção e do dendê cuja produção nacional é quase toda registrada em solo paraense – 98,27%.
No caso do açaí, como avalia o responsável pelo trabalho da Sedap junto ao IBGE, o estatístico e professor João Ulisses Silva, a tradição é tão arraigada no Pará que todos os 144 municípios da unidade federativa produzem o fruto. “A produção está presente em todos eles, registrando uma quantidade produzida de 1,6 milhões de toneladas em 224,04 mil hectares e produtividade de 7,12 toneladas por hectare, gerando um valor de produção de 5,93 bilhões de reais em 2022”, observou o estatístico. Ele destacou que o principal município produtor é Igarapé-Miri com o registro de 420,7 mil toneladas (26,4%da produção paraense).
Produzido em 30 municípios, de acordo com o levantamento do IBGE, o dendê está presente em 30 municípios. A quantidade produzida foi 2,9 milhões de toneladas em 185,96 mil hectares e produtividade de 15,6 toneladas por hectare, gerando um valor de produção de 1,20 bilhões de reais em 2022. Conforme o estatístico repassou , o principal município produtor é Tailândia (942,08 mil toneladas), com 32,47% da produção paraense.
Quanto ao abacaxi, conforme observou Ulisses Silva, a produção está presente em 92 municípios do estado, registrando uma quantidade produzida de 350 milhões de frutos em 14,18 mil hectares com produtividade de 24,7 mil frutos por hectare, gerando um valor de produção de 520 milhões de reais em 2022. “O principal município produtor é Floresta do Araguaia com 258 milhões de frutos, isso representa 74% da produção paraense”, explicou o estatístico.
OUTROS DESTAQUES
O Pará é o maior produtor de cacau do Brasil. De acordo com o levantamento da Sedap junto ao IBGE, a produção está presente em 65 municípios do estado, registrando uma quantidade produzida de 145,99 mil toneladas, em 152,84 mil hectares e produtividade de aproximadamente uma tonelada por hectare (0,96 kg/ha), gerando um valor de produção de 1,90 bilhões de reais em 2022. O município de Medicilândia, como informou Silva, fecha o calendário agrícola de 2023 com o município de Medicilândia, no sudoste do Pará, se mantendo como líder na produção de cacau paraense
Outra tradicional cultura, a mandioca, também é destaque no estado. Segundo levantamento do IBGE, a produção está presente em 138 municípios do estado, registrando uma quantidade produzida de 4,16 milhões de toneladas em 277,1 mil hectares e produtividade de 15 toneladas por hectare, gerando um valor de produção de 3,17 bilhões de reais em 2022. O principal município produtor é Acará (326 mil toneladas), com 7,8% da produção paraense, conforme explicou o estatístico.
PRODUÇÃO AGRÍCOLA
O calendário agrícola do IBGE toma por base o ano de 2022, conforme informou a coordenadora de planejamento da Sedap, Maria de Lourdes Minssen. No que se refere à produção agrícola, o Pará atingiu 2,31 mil hectares de área cultivada, resultando uma produção de aproximadamente de 15,04 milhões de toneladas (referentes a 35 mensuradas em toneladas) e 525,40 milhões de frutos (referente as culturas do abacaxi e coco-da-baía), com valor produção estimado em torno de R$ 24,38 bilhões.
“Com relação ao Valor de Produção dos produtos agrícolas no ano de 2022, o Estado do Pará ocupa a nona posição dentre as 27 unidades da federação, com participação de 2,76% do valor de produção nacional e apresentando um incremento de 11%, com relação ao ano anterior (ano de 2021)”, esmiuçou Maria de Lourdes Minssen.
A coordenadora de planejamento ressaltou que embora o Pará não esteja como o primeiro lugar na produção de pimenta do reino e do coco-da-baía, se destaca entre os três maiores produtores dessa cultura no Brasil. “No que tange à pimenta do reino, ela está presente em 79 municípios do estado, registrando uma quantidade produzida de 42,1 mil toneladas em 18,06 mil hectares e produtividade de 2,33 toneladas por hectare, gerando um valor de produção de 470,7 milhões de reais em 2022. O principal município produtor é Tomé-açu (4,8 mil toneladas), com 11,40% da produção paraense”, detalhou a coordenadora.
Já com relação ao coco-da-baía, como explicou Minssen, a produção está presente em 30 municípios do estado, registrando uma quantidade produzida de 175,02 milhões de frutos, em 17,42 mil hectares e produtividade de 10,04 mil frutos por hectare, gerando um valor de produção de 215,7 milhões de reais em 2022. O principal município produtor é Moju (79,5 milhões de frutos), com 45,42% da produção paraense.
AMANHECEU. Abatido pela noite mal dormida e faminto, Danilo tomou seu rumo, até aquele momento não sabido. Seguindo em frente, alcançou uma aldeia. Esperava ali ser encontrado pela organização. Nada. Os métodos ingleses eram falhos – ia pensando. Não foi encontrado naquele dia, nem no outro. Decidiu assim que tinha de resolver por si mesmo o problema, como de outras vezes. Deixou aquela estrada e seguiu em direção à frente de combate, próxima dos montes Apeninos. À tardinha, chegou a uma pequena cidade, que não conhecia e nem tinha tempo para verificar nos mapas de fuga – era Vignole, pequena cidade ao sul da Via Emília. De estômago vazio, deu várias voltas pela cidadezinha, nada conseguindo. Ninguém o achava. Desanimado estava o Índio e com vontade de desistir, mas ao mesmo tempo sem coragem para tal. Seria submetido a um terrível interrogatório por parte do serviço de inteligência tedesco e, se abrisse o bico, sobraria para muita gente – um desastre. Mas a fome aumentava, já não sabendo o que fazer. Quase ao desespero, eis que avistou uma senhora num segundo piso de um daqueles sobrados altos, muito comuns na Itália. Ela serenamente fazia tricô. Nada indicava que ela o ajudaria, pois a casa era muito grã-fina para partisanos. O Inglês frisara bem que era mais provável encontrar ajuda ente as pessoas mais simples, que, pela regra geral, constituía a maior parte dos antifascistas ou da resistência italiana. Ainda que não fossem, as pessoas mais elitizadas tinham de ser fascistas por necessidade, pois, do contrário, perderiam seus empregos. Pela aparência, aquela senhora nada tinha de partisana; bem ao contrário: a casa era uma das melhores da cidade.
A fome do Gaúcho era, porém, maior que a lógica, o bom senso e as razões do Inglês. O faminto olhou longamente para aquela senhora, cujo nome era Fiorella. Chamou-a e pediu comida. Levantou a pesada bicicleta ao ombro, subindo os dois longos lances de escadas que o levariam ao segundo piso da casa. A porta da moradia já estava aberta, e dona Fiorella numa expectativa que ele, em são consciência, não era capaz de compreender; era como se ela já estivesse à sua espera. Desconfiado, no seu trôpego italiano, dirigiu-se à senhora com o mesmo enredo de costume. Bem ou mal, ela conseguiu compreender, mais tarde revelando-lhe que o italiano dele havia sido o melhor que ouvira até então por parte de “quem” a procurava. Ouviu toda a história de forma cortês, porém exigiu ao final que ele revelasse a verdade. Desconcertado, Danilo contou-lhe a verdade, mantendo somente a farsa de ser estadunidense e não brasileiro, pois a sua real nacionalidade soaria inverossímil, por desconhecida da maioria daquela gente. Que Danilo esquecesse toda história por ele inventada, pois não precisaria mais dela daí em diante.
Deu-lhe para comer o macarrão habitual e um colchão de palha, pois isso era tudo que podia oferecer, porém muito mais do que o Gaúcho esperava. Disse-lhe Fiorella que podia ficar ali até o dia seguinte, e que à noite um parente chegaria do trabalho. Não deu mais detalhes. Enfim, o Índio nada mais esperava do que comida. Sentia-se capaz de passar mais outras noites ao relento frio do inverno, de forma que o pernoite veio como um acréscimo. No colchão de palha, então, dormiu profundamente. Estava muito cansado para pensar, até mesmo para desconfiar daquela acolhida inesperada. Na manhã seguinte foi acordado pelos seus novos protetores: dona Fiorella e seu primo. Ele queria ouvir outra vez a história de Danilo – a verdadeira, não a engendrada. O homem não interrompeu a narração. Ofereceu-lhe até mesmo um cigarro, daqueles lambidos, com uma dose de fumo suficiente para matar um cavalo, mas que o italiano tirava enormes tragadas sem esforço, com prazer, e que ele, o gaúcho, apesar de não ver um cigarro havia muito, não conseguia aspirar nem um pouquinho. Fumou, porém, como lhe foi possível.
Urra!!! Finalmente, foi encontrado. Encontrado, enfim!
Mesmo sem o admitirem, ele foi encontrado por aqueles dois italianos. Ficou decidido que ele permaneceria com os dois até o dia seguinte, quando o levariam à casa de uns outros “primos”, que eram partisanos. Ali sempre o próximo é que era partisano.
Na sua segunda e última noite na companhia daqueles parentes italianos, para encobrir e explicar a sua presença naquela casa, houve uma reunião a que compareceram os vizinhos para festejar a chegada e a passagem do sobrinho que tivera a casa destruída por bombardeio em Ferrara, e que, em consequência, ficara mudo. Em sua honra, comeu-se muita castanha assada e bebeu-se muito vinho tinto. Ficou bêbado, recolhendo-se ao seu colchão. Sua retirada foi desculpada e compreendida pelos presentes, que concordavam penalizados com o que lhe acontecera. Ao amanhecer, estava ainda azedo de tanto vinho, mas mesmo assim seguiram de bicicletas ao encontro dos primos, que eram partisanos. Assim, o nosso colega foi entregue aos cuidados da organização que tanto ouvira falar – ele que já estava descrente que existisse. O italiano deixou-o nas mãos daquela gente especializada, voltando ao seu ponto de atividade, onde sua tia voltara a fazer o tricô que, pela sua função, devia ter sido o mais comprido da guerra. Como o leitor amigo já compreendeu, a organização compunha-se de pessoal altamente especializado, que conversava estritamente o essencial e fazia muitas perguntas, e, para segurança de seu trabalho, não devia cometer enganos.
Tomaram todas as informações necessárias, confirmaram as datas, ouviram toda a história desde a queda, quiseram saber os mínimos detalhes, o que contrariava muito o nosso herói, que na ânsia de atravessar a linha de combate julgava os homens exageradamente enrolados. Já lhes mostrara a sua chapa de identificação que consigo conservava, já lhes dissera quem era, de onde viera, o que voara, qual o objetivo naquela manhã em que fora abatido; enfim, tudo o que realmente acontecera. Ingenuamente, sem avaliar o que conseguira realizar, não podia entender o porquê de tantas perguntas e confirmações. Para ele, a sua aventura tinha sido perfeitamente realizável, mas os homens da organização estavam meio descrentes, naturalmente por ele ter contrariado basicamente, nos mínimos detalhes, tudo que a boa técnica aconselhava em matéria de fuga.
Os seus interrogadores estavam admirados com os processos utilizados pelo gaúcho. Para os ingleses, nada daquilo poderia ter acontecido. O manual dizia justamente o contrário… Após muitas consultas e investigações pelos canais competentes, o Gaúcho foi dado como legítimo, dissipando-se as dúvidas.
Nessa mesma noite foi transportado para outra estação de espera, bem mais avançada para o front, onde outros em igual situação já o aguardavam. Havia militares estadunidenses, britânicos, italianos e agora um brasileiro. O único que a organização conhecera até então. Eram oito ao todo. Davam um tempo para se refazer fisicamente para a próxima mudança de estação, que seria gradativamente mais avançada.
Em deslocamentos sucessivos, feitos à noite, moveram-se para a última estação, na fralda da cordilheira. Por alguns dias, lá permaneceram esperando uma ocasião propícia, ignorada por eles. Eles – o pessoal da organização – nunca lhes diziam coisa alguma, por segurança. A ocasião esperada, propícia, chegou numa noite de violenta nevasca e frio cortante. Era a neve que aqueles homens incompreensíveis esperavam. Os guias italianos chegaram, formando o grupo. Misturando-os com algumas famílias italianas, que – tudo assim indicava – se prestavam àquelas aventuras em troca de remuneração. Não era a primeira vez que o faziam, pois não demonstravam preocupação alguma.
Com duas pílulas contra cansaço – dopados mesmo –, iniciaram a caminhada sem paradas. Em ritmo contínuo, galgaram os Apeninos por trilhas de cabras, íngremes, sempre em fila indiana. As quedas e escorregões eram frequentes, mas não podiam parar. Assim, no rigor de uma nevasca intensa, quando as sentinelas, premidas pelo frio, relaxaram a vigilância, conseguiram cruzar aqueles picos escorregadios, gastando catorze horas de caminhada sem descanso. Ao romper do dia seguinte, seus esforços foram coroados de êxito. Na mesma manhã, descansavam na frente aliada, entregues ao serviço de inteligência britânico, agora devidamente uniformizados. Foram separados, então. Não mais encontrou os militares dos Estados Unidos, nem os do Reino Unido, que, com ele, atravessaram as montanhas. Descansado, lavado, barbeado, bem alimentado, foi interrogado longamente pelos oficiais britânicos, que anotaram todas as informações fornecidas Danilo, posteriormente consideradas como as mais completas trazidas por um fugitivo naquela frente. Quanto à sua história, foi ouvida com muito interesse por ser ímpar naquele departamento, jamais, porém, poderia ser utilizada para ensinamentos futuros, por constituir uma quebra geral, quase absurda, de tudo aquilo que eles ministravam, baseados em estudos e estatística.
Acabado o longo interrogatório, o gaúcho, muito aborrecido com os dois dias que passava em companhia dos interrogadores ingleses, foi finalmente devolvido ao nosso convívio em Pisa, numa tarde fria, como qualquer outra naquele hotel esburacado em que vivíamos.
Os rapazes do 1º Grupo de Caça festejaram a volta de Danilo Marques Moura, esvaziando o que restava das rações de uísque, logo substituídas pelo horrível conhaque italiano, que fez o mesmo efeito. Em meio a forte ressaca, encerrou-se o capítulo mais heroico do 1º Grupo de Aviação de Caça, realizado por aquele gaúcho simples, que, sem pretensões, tornou-se merecedor de toda a admiração dos comandantes aliados que o conheceram, de seus colegas e de seus poetas e fazedores de anedotas.
(Adaptado do texto de Armando de Souza Coelho, que atuou no Teatro de Operações da Itália com 62 missões realizadas. Era 2º tenente-aviador R/2. Revista Força Aérea nº 30, março de 2023, pp. 52 a 59)
E este é um de nossos muitos heróis, numa classificação literária, uma espécie de anti-herói. Herói de guerra, mas herói anônimo, um dos muitos heróis esquecidos nas páginas do tempo da História do Brasil. Claro, se fosse norte-americano, isto há muito lhe teria rendido um belo filme, sucesso de bilheteria. Mas nasceu brasileiro.
Vou mais:
Seu irmão, Nero Moura, primeiro comandante do Grupo de Aviação de Caça, também herói de guerra, um herói que comandou outros heróis, nem sequer foi promovido na ativa aos postos de comando. Somente foi ao posto de brigadeiro na Reserva Remunerada por força de legislação.
Nós, brasileiros, precisamos valorizar mais a nossa gente, as nossas coisas, a nossa história, reconhecer os nossos verdadeiros heróis.
DANILO ainda não havia encontrado um meio de atravessar o rio. Contou ele ingenuamente que teve a seguinte ideia: resolveu seguir aquela margem do rio, sempre pelo lado norte e sempre em direção ao oeste, buscando a nascente do Pó, onde naturalmente ele seria tão estreito a ponto de ser possível atravessá-lo. O Pó nascia quase na França. Caminhou e, à medida que entardecia, o frio se intensificava; seus joelhos doíam. No dia seguinte, viu que existia uma aldeia próxima e decidiu seguir na direção do vilarejo. Na terceira casa à beira da estrada estava um italiano, igual a tantos outros, a rachar lenha. Rachava a lenha e ato contínuo a empilhava a seu lado. O Índio, exaustíssimo, moral abatida e desanimado, sentou-se ao lado da pilha de lenha rachada e ficou a observar o camponês. Ele manuseava o machado e os pedaços de lenha iam sendo jogados para a pilha ao lado. Esse trabalho fez Danilo recordar os seus afazeres de campo, na propriedade do seu Gilberto Moura, lembranças familiares que se tornavam frequente e que lhe davam força para seguir lutando com todas forças visando superar aqueles obstáculos. Mãe, pai, irmãs: na verdade, não tinha certeza se iria revê-los. Quanto aos irmãos, todos os três estavam na Itália peleando naquela maldita guerra: Nero Moura, que era seu comandante, Osmar Moura, major do Exército e ele, o mais jovem, como segundo-tenente-aviador da reserva convocada.
O dia do pagamento se aproximava. Tinha que chegar a tempo.
O italiano rachava lenha. Os minutos se passavam e nenhum dos dois dizia uma palavra. O machado subia e descia sobre a lenha e as achas avolumavam o monte. Por fim, o aldeão pediu-lhe o que desejava. Danilo entrou com o enredo de sempre, a casa bombardeada, arruinada… Finda a história, pediu-lhe um copo d’água, comida e pouso. O lenhador o escutou com toda a atenção, dando-lhe vinho, comida e acolhida em sua casa. Às poucas perguntas que se seguiram, o Gaúcho procurava dar respostas curtas e o italiano não insistia. À noite, além das estrelas de uma bela noite de inverno italiano, mais intensamente brilhava a estrela daquele rio-grandense singular, simbolizada na pessoa daquele camponês bondoso. Chamando Danilo a um canto, o italiano lhe disse simplesmente que acreditaria na sua história, não fossem as botinas. As botinas militares, que o Gaúcho conservava consigo por conta do rigoroso frio, não era própria de um pobre-diabo arruinado pela guerra. Nosso anti-herói sentiu-se perdido: fora descoberto. E agora? Logo seria entregue aos alemães – pensou ele naquele instante. O italiano, porém, lhe desfez as dúvidas inquietantes. Danilo estava em boas mãos, nas mãos de um antifascista, nada tendo a temer. Danilo teve que abrir o jogo, pois naquele homem simples, um pedreiro de aldeia pobre – era pedreiro e não camponês, como o Índio supunha até então – residia um dos muitos heróis anônimos daquela guerra insana. Diante do inesperado, contou-lhe toda a sua história, desde o abate de seu avião. O pedreiro o tranquilizou, dizendo-lhe que fosse dormir. Pela primeira vez, em muitas noites, o Índio teve uma cama com lençóis, cobertas grossas e um colchão macio e repousante. Tratariam do caso na manhã seguinte, que dormisse tranquilo.
Acordou já bastante tarde na manhã posterior. O corpo doído bem que merecia aquele “abuso” daquela cama confortável, depois de tantos dias de dormida na palha fria dos potreiros. A cama era até melhor do que a que usava em Pisa. Relutou um pouco, mas finalmente levantou-se, já desacostumado de tanto conforto. Desceu, encontrando pela primeira vez a família do bom homem. Nada de estranho ou de curiosidade lhe disseram ou perguntaram, sendo a sua presença ali o fato mais natural do mundo. Fora promovido a Fratello, que acabava de chegar do Norte. O anfitrião saíra cedo para o trabalho, ficando a família incumbida de fazer as honras da casa. Deram-lhe de comer e não permitiram que Danilo os ajudasse em coisa alguma. À noite, o italiano voltou do trabalho, dizendo-lhe que estava cuidado do seu problema, que ele tivesse paciência pois ao final tudo sairia bem. Andara sondando a melhor maneira de conseguir fazer a sua travessia, confidenciando-lhe que não era a primeira vez que se empenhava naquele ofício. Na casa, já haviam estado outros em situações parecidas com a sua. Mesmo tempos depois de finda a guerra, o Gaúcho jamais conseguiu compreender bem qual era a daquele italiano. O pedreiro jamais deixou transparecer se fazia aquilo por conta de pertencer a alguma organização especializada, ou se fazia tudo por simples altruísmo. De modo algum, o homenzinho parecia agente na retaguarda alemã, tal era a simplicidade no modo de agir, uma vez que lutava com todas dificuldades comuns aos italianos. Vivia do produto da hora no campo de sua casa, comia do macarrão que sua esposa fazia a partir da escassa farinha de trigo que conseguia. Ou o homem era um agente, um perfeito artista numa perigosíssima missão, ou então um abnegadíssimo samaritano a enfrentar o risco com toda a sua família, numa coragem indescritível. Era certo que se os alemães ou os fascistas descobrissem estar ali escondido um inimigo, as consequências seriam terríveis: fuzilamento sumário e queima de toda a propriedade da família. Resumindo: de uma maneira ou de outra, o pedreiro era um homem de grande valor na sua existência heroica e anônima.
O nosso herói (uma espécie de anti-herói, na verdade) ficou com aquela família durante uma semana, tempo suficiente para recuperar-se a fim de enfrentar o restante da jornada. Enfim, foi informado de que atravessaria o rio naquela tarde, ora em que os trabalhadores voltavam para casa na margem sul do rio Pó, fazendo a travessia. Era a ocasião mais propícia. Então, vestiu sua roupa velha e, munindo-se de uma broa, despediu-se de todos e foi com o italiano até o ponto de embarque. O bom homem lhe dera uma bicicleta velha e enferrujada, que precisava de lubrificação, uma máquina bem usada. Chegaram à prancha de embarque e tomaram lugar na balsa. Nada havia a temer, já que o pessoal da fiscalização já estava instruído pelo italiano. Com umas garrafas de grappa ou conhaque, tudo se conseguia daqueles alemães já cansados de tanta guerra. Por precaução, porém, durante a travessia, o pedreiro fez com que as botinas de Danilo ficassem ocultas debaixo da bicicleta e do seu longo casaco; isso evitaria a curiosidade dos outros italianos. Em pouco tempo, estavam todos na margem sul do rio. Caminharam juntos até o primeiro povoado, onde tiveram que se separar e cada seguiria seu caminho. O bondoso italiano – mais um na saga de Danilo – fizera tudo o que lhe era possível fazer, ou – quiçá – cumprisse a sua missão. Não seria exagero se se descobrisse que aquele homem era um coronel ou outra patente do serviço secreto. A verdade é que nunca se soube ao certo. Deixou o Gaúcho. Ele nada mais poderia fazer. Dali em diante, nosso herói estava entregue novamente à sua própria sorte, que, por sinal, era muito boa.
Estava só outra vez. Montou na bicicleta e começou a pedalar rumo a Ferrara, sempre na estrada principal. O intransponível rio Pó ficara para trás. Pedalou durante algumas horas, e em breve os músculos se ressentiram do exercício, pois não estavam acostumados à longa caminhada, não a pedalar. Parou para descansar à beira da estrada. Danilo percebeu que estava bem próximo ao front e o movimento de militares alemães era intenso. Dispôs a redobrar o esforço, descansando o mínimo possível. A cada momento, esperava ser descoberto, porém, enquanto isso não acontecia, descia para o sul. Se o prendessem e nada de pior lhe ocorresse, provavelmente seria levado para um campo de concentração muito ao norte, e assim teria de escapar, mas a possibilidade de ser preso não lhe agradava, pois teria de voltar e fazer o mesmo passeio, e – pior – já era o pagamento. Um homem com esse espírito merecia o êxito que obteve. Foi pedalando e, contra as expectativas pessimistas, conseguiu novamente atravessar uma cidade, Ferrara, quartel-general do exército alemão, sem que nada de ruim lhe acontecesse. Não tardaria a chegar a Bolonha, que nessa época ainda se encontrava relativamente afastada do front, porém não tão distante. Essa era última cidade importante no seu itinerário de fuga.
O tempo passava e o Gaúcho começava a perder as esperanças de encontrar os homens da organização de fuga que o Inglês mencionava nas aulas. Até então, tudo o que conseguira fora com o seu próprio esforço e a presença em seu caminho da boníssima gente que o acolhia durante a dura jornada. Alcançou Bolonha, adotando os mesmos processos truncados usados desde que a artilharia antiaérea alemã atingira seu avião. Vagou pela cidade por uns dias e, nada conseguindo de excepcional, decidiu que o melhor seria seguir. Deixou Bolonha, então. Percebeu que não era mais possível continuar andando em direção à frente de combate, pois as estradas estavam intensamente vigiadas, havendo fiscalização constante de documentos das pessoas que transitavam nas proximidades. A única rota possível era seguir para oeste, e assim o fez. Com a bicicleta, tomou aquela direção. Na estrada, cansado, ia pedalando a velha e pesada máquina quando foi ultrapassado por uma carroça puxada por dois animais. Recordando seus tempos de garoto na propriedade do seu Gilberto Moura, e, principalmente, porque o cansaço era intenso, com mais esforço conseguir alcançar a carroça e morcegar o veículo, deixando-se rebocar a ela agarrado pelo braço esquerdo. O dono da carroça não se opôs à presença de Danilo, e tudo ia às mil maravilhas. Se continuasse assim, certamente alcançaria o dia do pagamento, que já estava ali. Aconteceu, porém, de a carroça ultrapassar um soldado alemão, que também de bicicleta seguia para a mesma direção. O soldado, vendo o Gaúcho pendurado do lado oposto da carroça, considerou que a ideia não era má. Pisou com mais força e os alcançou, morcegando ele também a carroça do lado direito. O brasileiro e o alemão, fuzil à bandoleira, não trocaram palavra alguma e continuaram agarrados à carroça por muito tempo. Essa indesejada presença desagradou bastante o nosso herói, mas nada podia fazer. Não largou do reboque por conta disso, já se conformando com a presença casual do inimigo, e, de quando em vez, olhava de soslaio para ele. Numa dessas olhadelas, observou algo que constituiu a razão essencial para desistir da carona vantajosa: a manga do caso subira com a posição do braço esquerdo, deixando a descoberto o seu relógio, que Danilo, pela primeira vez, percebia em seu pulso. Sentiu medo. Se o alemão visse o relógio, estaria perdido. Mais do que a botina, um relógio – objeto caro naquela época – não se adequaria à imagem de um italiano pobre. De outro lado, não poderia abandonar de repente o meio de transporte numa estrada em campo aberto, sob pena de isso parecer estranho e despertar suspeitas por parte do tedesco. Naquele dilema, eis que vislumbrou adiante um cruzamento. Seria ali que abandonaria a carroça sem que isso parecesse repentino.
Chegando ao cruzamento, largou do reboque dobrando à sua direita da maneira mais natural possível, como se ali realmente fosse o lugar a que se destinava. “Grazzie!” – deu-se ao exagero de gritar ao carroceiro, que lhe respondeu: “Prego!”. Pedalou ainda por algum tempo nessa estrada secundária, e quando viu que era suficiente, já fora da vista da carroça, retornou à estrada principal, já sua velha conhecida. A noite o alcançou no descampado, nenhuma casa, nenhuma vila, nada. Dormiu ao relento naquela noite, tendo apenas como anteparo uma carroça abandonada.
Foi ilusão imaginar que poderia dormir sossegado, malgrado o frio de lascar. Aproveitando o escuro da noite, os militares germânicos enchiam a estrada com suas viaturas em comboios barulhentos, que, com faróis apagados, transitavam vagarosamente. O Gaúcho pôde testemunhar o valor da camuflagem inimiga, e mais tarde pôde dar informações sobre o movimento deles durante a noite daquelas estradas. Amanhecendo, aqueles caminhões desapareciam como que por encanto, ocultando-se nos potreiros das fazendas ou debaixo de redes de camuflagem, tudo bem profissional. Rezou para que aparecesse um Beaufort inglês e fizesse ali uma faxina naquela estrada. Nada disso, porém, aconteceu e teve que passar a noite sobressaltado com o movimento barulhento daqueles caminhões a diesel do grande inimigo.
SEMPRE pela estrada principal, seguiu caminhando em direção ao sul. Chegou a Padova, uma cidade importante, pois era entroncamento ferroviário e para onde convergiam as estradas de rodagem a partir de Vicenza, Mestre e Veneza. O certo era evitá-la, contornando-a – era o que o Inglês recomendava. Mas Danilo não era da mesma opinião do militar britânico; atravessou a cidade de ponta a ponta sem conhecer as ruas, seguindo a direção que julgou ser a que o conduziria à saída de Padova, direcionando ao rio Pó. Encontrou muitos militares alemães em seu caminho, porém não se preocupou com eles, e eles tampouco com a sua figura, já que havia uma profusão de pessoas esquisitas vagando pelas cidades italianas. O Índio considerou-se um destes. A essa altura, já se considerava seguro do seu papel de um camponês italiano. Sbagliato, ruvinato, destruto, mallato e tantos outros adjetivos que usava ao enrolar a língua ferida, sempre inventando uma história a fim de conseguir comida e lugar para passar a noite.
Atravessou sem atropelos Padova. Veio então descendo rumo ao sul, sempre pela estrada principal. Estava sujo, mal alimentado, barbado e com a língua inchada ocupando grande volume da boca. Danilo convencia mesmo com sua aparência de um pobre italiano, que estava abandonando sua cidade natal em busca de melhores condições ou – como por várias vezes teve que mentir – à procura de parentes que dizia possuir e que moravam em cidades mais ao sul, sempre ao sul do local em que ele se encontrava. Qualquer um acreditava nele, pois as estradas estavam povoadas desses pobres-diabos que, não tendo mais como servir aos alemães nas fábricas ou em outros trabalhos pesados, voltavam para as suas casas, algumas as encontrando, mas muitas vezes constatando terem sido bombardeadas ou ocupadas. O êxodo era em todas as direções, e um deles era o Gaúcho caminhando em direção à sua base militar para encontrar os seus iguais e… de olho no salário que sairia por volta do dia 28. Liras e as italianas: razões para andar mais depressa.
Caminhando sempre, enfrentando situações delicadas, em companhia dos estropiados que vagavam pelas estradas e dormindo em estábulos fedorentos. Nada disso aborrecia Danilo, pois o máximo que podia lhe acontecer era ficar um pouco mais sujo, e seu cheiro há muito que não era de o de rosas. Deixava para trás Monsélice, Stanghella, Rovigo, Arqua e Polesella. Rovigo, por sinal, era uma cidade fortemente defendida e vigiada, pois lá existia uma fábrica de um gás qualquer, que era utilizado como combustível em motores a explosão, portanto, infestada de militares germânicos, mas nada disso causou medo ao nosso herói. Finalmente, chegou ao rio Pó.
O Pó, segundo o próprio Danilo, constituiu para ele o primeiro problema real, que lhe pareceu insolúvel. Com o inverno rigoroso, o rio, ainda que não congelado, tinha em suas margens uma crosta fina de gelo, indício seguro da baixíssima temperatura das águas. As pontes havia tempo inexistentes, pois foram bombardeadas ou danificadas. Ainda que íntegras, as pontes de nada serviriam ao Gaúcho, pois estariam controladas por sentinelas, que certamente verificariam a documentação de identidade, papel que ele não possuía. Alemães e italianos atravessavam o rio a bordo de balsas, devendo identificar-se ao embarcarem. E agora, Danilo? Tal era o problema. Parecia-lhe inútil todo o esforço, toda a caminhada até ali. Entre ele e a base de Pisa, onde estava baseado o Primeiro Grupo de Caça, estava apenas o rio e alguns montes, os Apeninos. Sentia-se perdido, mas, confiando sempre em sua estrela, não se desesperou – certamente haveria uma saída. Subiu no barranco que margeava o rio e ficou a visualizar o movimento e a imaginar as possíveis soluções para atravessá-lo. Inteirou-se das balsas e das sentinelas. Sentou-se para descansar o joelho, bastante prejudicado pela longa marcha. Uma das sentinelas o observava, dizendo-lhe algo em alemão. Não respondeu por não haver entendido o idioma, sobretudo por precaução. O soldado não deu importância, considerando o Gaúcho mais um italiano desocupado, como tantos que percorriam as estradas. Seria complicado se o alemão lhe pedisse documentos. Vendo-se percebido, Danilo considerou melhor decisão descer o barranco e voltar à estrada que margeava o rio, como antes. Da estrada, buscou um lugar afastado no campo, a fim de descansar e pensar no que fazer. Deitou-se no capim.
Não era muito de pensar e sim de agir, mas, dessa vez, pensou longamente na solução. Danilo lembrava-se da família e da vida de campo, pois seu pai era agricultor em Cachoeira do Sul, mãe, irmãos e irmãs. Cavalos… era isso. Compraria um cavalo e atravessaria o rio no lombo do animal. Animou-se, mas logo desanimou novamente. Teria de ser à noite, mas e depois. A água estava bastante fria e teria que esperar a roupa secar, sendo abordado, teria de dar explicações e ele não as tinha. Não, não dava para atravessar o Pó daquela maneira gaúcha.
O dia já estava adiantado e sentiu fome. Seguindo a estrada, chegou à primeira casa de camponeses encontrada e pediu água e comida, contando o enredo de sempre, num italiano atrapalhado pela língua ferida. Como há gente boa em toda a parte, e, com boa vontade, aquela pobre gente procurava compreender o que ele dizia, levando-se em conta os numerosos dialetos existentes, muitos desconhecidos por parte dos nativos. Por essa razão ou mesmo por caridade, em razão do lastimável estado de Danilo, aceitavam a história sem perguntas embaraçosas. Para sobreviver, ele adotava o seguinte método: primeiro passo era escolher o italiano que não parecesse fascista ou germânico – um critério aleatório e só a boa sorte ou as orações de dona Maria Emília, sua mãe, poderia explicar não ter sido denunciado e preso. “Buona sera, paisá!”. Aguardava a resposta do italiano – esperava que fosse italiano não fascista. Sendo bem acolhido, entrava com o enredo de sempre. Se não, prosseguia a caminhada sem aparentar pressa, para não levantar suspeitas. Na melhor hipótese, continuava a conversa: “Per favore, um bicchiere d’acqua.”. Raramente eles usavam esse líquido, a menos que fosse para banhar-se. Ofereciam-lhe um copo de vinho, que, com o estômago vazio, lhe fazia exagerar no papel de italiano. Uma das vezes que isso aconteceu foi quando, depois de exagerar no vinho, decidiu fazer a barba. Ao entrar na barbearia da vila, deparou-se com alguns oficiais subalternos alemães, que também aguardavam a vez de ser barbeados. Esperou a sua vez, fez a barba. Mais tarde, recobrando o pouco juízo que tinha, assustou-se com o que fizera. Nas vezes em que era bem recebido, depois do vinho e do pouso, pedia um pouco de pão. Danilo contava que sua casa havia sido bombardeada pelos ingleses – ingleses, não estadunidenses, pois para aquela gente humilde eram ingleses todos os aviões ou máquinas que bombardeassem. Ignoravam por completo a existência de outras forças militares aliadas na Itália, pois a propaganda inglesa era intensa, sem contar o formidável serviço secreto britânico por trás das linhas militares de Hitler. Ele era um pobre-diabo arruinado, perdido naquele caos provocado pela guerra; mostrava então a língua inchada, sabendo que isso comoveria aqueles bondosos camponeses – o que de fato ocorria. Sobre os documentos, que não possuía, haviam sido perdidos no incêndio da casa, e agora estava seguindo para Bolonha, a fim de pedir ajuda dos parentes que lá residiam. Na cidade seguinte, os parentes de Danilo moravam noutra cidade sempre mais ao sul. Concluindo a história, em geral tinha garantida a pousada para a noite. Assim, mais uma vez nessa manhã, às margens do rio Pó, conseguiu o almoço e bebeu do vinho de fabricação doméstica, mercê da hospitalidade campesina. Confortado com a refeição, prosseguiu caminho.
DEVIDO à missão de que se ocupava na ocasião – metralhamento de composições ferroviárias num entroncamento fortemente defendido –, deve ter saltado à baixa altura, o que não encorajava a prognósticos muito otimistas acerca de sua caveira. No 1º Grupo de Caça, sentiu-se a falta do Gaúcho, mas a guerra continuava, se não fosse ele, teria sido um outro do Grupo. Não havia tempo para lamentações. Talvez por respeito, por sentimento, ou qualquer outro motivo, suas anedotas não eram mais contadas, mas lembradas com um cunho de saudades. Sua voz estridente não era mais ouvida na garagem, e mesmo os sargentos, cabos e soldados da Garagem, seção de que Danilo era o chefe, sentiram a falta de suas ordens aparentemente gritadas, na maneira característica que todos davam risadas – na ausência dele, obviamente. Ele não voltou naquela manhã de inverno. O que teria acontecido? Era a dúvida de todos. Os dias se passaram e logo o pessoal se conformou, e a alegria foi até maior quando da sua volta, após a fuga excepcional, que só ele mesmo conseguiria realizar com êxito. Estava com 19 quilos a menos.
Muito distante de sua base, em Pisa, oGaúcho foi abatido por armas automáticas. Treviso dista um espaço aproximado entre as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Saltou a baixa altura e, como Deus também é gaúcho, chegou bem ao solo, nada mais lhe acontecendo do que um corte na língua, que, longe de ser uma infelicidade, ao longo do caminho que faria lhe seria de grande utilidade, representando a diferença entre a liberdade e a prisão ou entre a vida e a morte.
Conta ele que, ao chegar ao chão – o que aconteceu muito rápido, pois o paraquedas mal se abriu e ele sentiu o tranco, logo em seguida tocando o solo, mordendo ele a língua nesse momento –, ficou um tanto desorientado, sem saber qual atitude a tomar. Vencida a indecisão inicial, resolve colher rapidamente o paraquedas, afastando-se do local da queda. O campo em que caíra estava coberto de neve. O trigo já havia sido colhido e a palha estava empilhada para servir de alimento ao gado durante aquele inverno. Encontrava-se em campo aberto, não sabendo o que fazer. Recordou-se – disse ele mais tarde – das aulas do Inglês, agente de inteligência britânico, e ainda sem saber o que fazer ocultou-se no primeiro monte de palha, pois alguém se aproximava. Era um italiano, humilde camponês, aparentemente inofensivo. Entretanto, naquela situação, não podia confiar em ninguém. Tinha que ter certeza. O Inglês havia ensinado assim. O homem aproximou-se, e Danilo ficou na indecisão de lhe dar um tiro ou conversar com o italiano.
Decidiu-se pela última alternativa – para sua felicidade. Esperou. O italiano falou-lhe primeiro. Ainda desconfiado, e com muito medo, dispôs-se a ouvir o italiano, que na sua simplicidade, no isolamento em que vivia, nunca poderia imaginar o quanto esteve próximo de levar um tiro no rosto. É necessário que se faça uma ressalva para louvar a coragem, o desprendimento desinteressado destes camponeses italianos, que, mesmo sem ignorar as consequências – os alemães não faziam mistério das represálias e castigos que infligiriam a todos que ajudassem os aliados –, ofereciam a sua ajuda a estranhos, da mais nobre maneira, dentro de suas limitadas possibilidades. O nosso gaúcho estava na presença de um destes heróis anônimos. Este lhe perguntou, na sua maneira simples e substancial: “Inglês ou americano?” O Índio prontamente respondeu: “Americano”. O bom homem não entrou em pormenores. Escondeu-o mais ainda no monte de palha, cobrindo-o todo. Disse-lhe que voltaria mais tarde, retirando-se.
Horas amargas deve ter passado o Índio, sozinho, debaixo daquela palha úmida, com frio e muito mais medo, sem sossego de espírito, aguardando o que viria depois, mas que poderia ser o pior. Não teria sido melhor ter passado o recibo no italiano? Naquela solidão escura e umedecida do monte de palha a cabeça não o deixava em paz por um só instante. Estava desesperado, pensando que não mais suportaria a situação. Nessa luta íntima, o tempo foi passando e havia sempre uma esperança, a que, como bom jogador de pôquer – ele considerava todos os ângulos –, mantinha-o sempre com um restinho de moral. Foi justamente este resquício de moral que o fez suportar aquelas primeiras horas terríveis. A palha molhada o incomodava profundamente, porém o desconforto moral era bem maior. Se fosse outro, pensaria com raiva nas poesias que tanto falavam do odor úmido dos campos. Mas ele nunca tomou conhecimento da existência de poesias. Com muito frio e medo, foi suportando a noite inteira. Sentiu-se enregelado e o corpo começava a se ressentir da posição forçada debaixo da palha, mas tudo isso era bobagem – contou ele – comparado com o estado de ânimo de que se sentia possuído. Confessou que esteve próximo a entregar-se ao desespero, desistindo de uma vez. Nessa indecisão, aguentou valentemente a noite fria. O Gaúcho era especial de verdade. Valente, simples, inconsciente de sua força moral, enfrentou tudo aquilo com uma galhardia inigualável, com uma naturalidade nata, só compreendida pelos que com ele privaram. Ao contar a sua história, depois de voltar ao Grupo, sentia-se que estava sendo honesto no seu relato, sem preocupações de se fazer herói.
A madrugada o encontrou entorpecido, sonolento, abatido pelo cansaço, porém não vencido. Como havia lhe prometido, o bondoso italiano voltou, trazendo-lhe comida. Danilo alimentou-se como pôde, já que o apetite, nas condições em que se encontrava, não era grande. As primeiras 24 horas tinham passado e ele não havia sido descoberto. Se o Inglês sabia mesmo das coisas, a possibilidade de fuga do Gaúcho aumentara um pouco. Mais animado, o Índio convenceu o camponês a lhe arranjar roupas civis, em troca das suas. O pobre italiano, embora relutante, acabou concordando e ficou com a roupa de voo de Danilo. Ele, então, vestiu a roupa velha e surrada que conseguiu, conservando, porém, as calças de gabardine de lã e as botinas, peças do uniforme, pintando estas de preto, com a ajuda do italiano. Ficou também de posse de sua bolsa de fuga, algum dinheiro italiano, da bússola, fósforos, medicamentos especiais, além dos mapas da região, estampados em seda. É óbvio que, sendo abordado e revistado pelo inimigo, toda essa tralha denunciaria sua posição de aviador-militar. Fez mais: distribuiu o que restou da bolsa de fuga pelos bolsos de sua “nova” roupa. A imprudência de Danilo foi mais além: sem pensar muito nas consequências, conservou o relógio de pulso, contrastando com a sua nova condição de italiano pobre. Mas nem pensou naquilo, que fez por força do hábito, somente bem mais tarde notou que conservava o objeto no pulso. Agora, de boné velho na cabeça, tal qual o costume da terra, e com sua famosa barba azulada de um dia de idade, poderia ele passar por qualquer italiano da Calábria. Sua tez morena e seu otimismo invulgar davam a Danilo tal pretensão.
Metido em tal indumentária, iniciou sua fuga, algo original, sem precedentes, totalmente fora dos manuais para situações de guerra. Danilo, com ajuda dos mapas e muito mais com a ajuda do bondoso e temerário italiano, orientou-se quanto à região em que se encontrava. Voando, era tudo mais fácil do que em terra firme – afirmou mais tarde o Gaúcho. Não dispunha de nenhuma referência à mão. O Inglês (do serviço secreto britânico) instruíra em suas aulas como se deveria proceder em situações como a que se achava o militar brasileiro. Sim, ele devia seguir o caminho mais próximo de gente amiga, ou dirigir-se às montanhas, onde se sabia existirem os partisanos, ou ainda tentar alcançar a fronteira suíça e lá ficar internado. Isso era o certo a fazer. Contudo, não se preocupou com esses detalhes sem importância. Diferenciado, Danilo nem ao menos cogitou qualquer dessas possibilidades; meteu rumo ao sul, que era o de Pisa, onde estava baseado o Primeiro Grupo de Aviação de Caça, sob o comando do mano Nero Moura. Ademais, estava nos primeiros dias de fevereiro e a gaita sairia lá pelo dia 28 do mês. Sim, era crucial chegar antes da data do pagamento, pois, do contrário, seria considerado desaparecido, extraviado ou coisa assim. E aí seria o diabo para receber aquelas liras. Danilo, de volta, contou ser essa a sua maior preocupação. Armando Coelho, por meio do qual chegamos a esta história, acreditava sinceramente ser verdade, tal o jeitão peculiar do Gaúcho, sendo as reações dele todas diferentes. Difícil existir outro igual.
Guiado pelo italiano, dispensou a intricada rede de estradas secundárias, pois estas não constavam do mapa de fuga e, de bicicleta – o camponês levou-o no quadro – alcançou a estrada principal que o levaria a Padova. Sinceramente comovido pela excepcional ajuda, despediu-se do bom homem, que desejou a Danilo felicidades. “Alguri!” – quis beijar o Gaúcho à moda da terra, mas ele não consentiu. “Homem, não!”. Para encurtar a despedida, prometeu ao italiano que, terminada a guerra, voltaria para o rever. Queria ver o vestido feito de paraquedas que a irmã do camponês iria fazer, tão logo os tedescos saíssem da Itália. Mais tarde, cessado o conflito, Armando Coelho foi testemunha de que o Índio cumpriu a palavra, tendo voltado para ver o vestido de seda branca, que fizera parte do seu paraquedas, levando significativa ajuda em alimentos. Dessa vez, deixou-se beijar à maneira daquela gente simples. Quando prometera voltar para rever o amigo, Danilo estava distante de pensar que isso realmente se realizaria.
Estava agora sozinho, na estrada principal que ia para Padova e em pleno dia. Tudo exatamente ao contrário do que o Inglês recomendava fazer, mas isso em nada lhe preocupava. Afinal, ele tinha suas cartas: tinha jeito de italiano e a língua mordida no salto de baixa altura, detalhe que disfarçaria o sotaque estrangeiro.