ERA uma vez…

… na Escola de Especialistas!

Corpo de Alunos preparado para o desfile militar de 7 de setembro de 1978 (foto: aluno Curvelo)
 
COM ABSOLUTA certeza o maior dos perrengues por que passei naquele primeiro semestre de 1979, e derradeiro como aluno da Escola de Especialistas, foi exatamente o serviço de aluno-de-dia ao Corpo de Alunos (CA), para o qual fui escalado tão logo principiou o semestre. Foram vinte e quatro horas compridas.
Os serviços de aluno-de-dia e demais serviços dados pelos alunos visavam a prepará-los às batalhas que enfrentariam mais tarde como sargentos na futura unidade onde viriam a ser classificados. Creio que a maioria de nós não detinha pleno conhecimento disso, porque, a bem da verdade, significava para a maioria um grande peso. Pelo menos esse era o meu caso, ignorante de uma série de coisas e também das enormes vicissitudes que a vida futura reservaria à minha pessoa. Era eu apenas um Forrest Gump que viria a testemunhar no futuro uma série de situações inusitadas e até mesmo embaraçosas, mas que não poderia avaliar no momento o real sentido de cada um dos fatos presenciados.
Fui um dos primeiros a ser escalado para aquela difícil missão, talvez a mais dura para um aluno com quase nenhuma experiência militar. Houve sim, é verdade, aqueles três semestres de instrução que vinha experimentando na base do piloto automático. Essa era toda a minha experiência como militar até então: quase zero. Como aluno-de-dia a minha figura ficaria em evidência perante mais de duas mil almas, ação para a qual aquele guri não estava em absoluto preparado. Os eventuais acertos figurariam como meros detalhes, reles obrigação, detalhes imperceptíveis, ao passo que os erros seriam severamente observados e criticados, sendo isso motivo de galhofas no círculo da alunada.
O índio aqui começava mal o semestre.

A naba voadora

Ademais, ainda estava fresco na memória de todos nós o triste episódio em que alguns de nossos colegas foram desligados do curso por uso de entorpecentes, doze no total, incluindo alunos de outras turmas. Da Tarjeta Branca lembro até o nome de alguns: Santana, Nunes, Pedroso, Jander… Recordo-me também do rosto juvenil de cada um deles.
Seria a temível naba voadora, tão anunciada desde a primeira série, que finalmente teria aparecido?
Pensei que ela surgira naquele episódio do Cavalo de Aço versus Valdomiro. Já estávamos na segunda série, primeira metade de 1978. Naquela tarde em que todo o CA estava em forma naquele grande pátio, aguardando o ordinário marche para as instruções vespertinas, o oficial de permanência – naquela jornada o escalado era o tenente Lucas – notou uma fração de tropa mexendo-se muito, contrariando as ordens severas de imobilidade. Além disso, um aluno, o Valdomiro, conversava com outro, o Orival. O oficial aproximou-se e gritou ordens de imobilidade ao Valdomiro, dizendo coisas como: “Você é muito novinho, aluno. Você ainda está fedendo a almoxarifado”. Valdomiro respondeu porém em voz mais baixa: “… e fique sabendo que eu não tenho medo desses ‘negocinhos’ que estão aí em cima do seu ombro…”. Possesso, o oficial chamou o sargento-de-dia, que anotou o número do nosso colega. Porém, ao contrário do que a gente imaginava, Valdomiro não teve punição severa, não passando de um impedimento (licenciamento suspenso) de um final de semana. Foi considerado que o aluno reagiu apenas para defender sua dignidade.
Valdomiro era um goiano peitudo, como nos disse o Adão Paulino, seu conterrâneo. O colega foi digno do nosso respeito pois fez uma coisa que nenhum de nós em sã consciência faria: enfrentar um superior, ainda mais sendo um oficial, que naquele tempo tinha poder para mandar recolher um praça ao xadrez.
Não foi então dessa vez que a famosa naba voadora fez o temível pouso no pátio do Corpo de Alunos.
Todavia, neste outro final de semana, os mais espertos – talvez – estranharam uma sexta-feira sem a obrigatória formatura geral para a revista de uniforme, leitura de boletim e pronunciamento do comando do CA, que geralmente era feito pelo capitão Pinheiro, o Sapão, ajudante do Corpo de Alunos, uma espécie de subcomandante do Corpo. Ficaria esse evento para a segunda-feira, excepcionalmente.
Havia algo de podre no ar. Mas é claro que nem notei.

Desfile de juramento à Bandeira (foto: aluno Curvelo)
Pois bem. Naquela fatídica sexta-feira alguns oficiais do CA montaram uma grande “operação de guerra” (vamos aqui exagerar um pouquinho no uso dessa expressão), oportunidade rara em que eles, oficiais auxiliados por sargentos, aplicariam alguns métodos coercitivos que lhes foram ensinados pelos manuais acadêmicos. Tal operação tinha por objetivo (e isso só mais tarde vim a compreender) separar o joio do trigo, apanhar o gato entre os pombos, pegar os lobos em pele de cordeiro, identificando finalmente os alunos usuários de substâncias entorpecentes, fato este que (passou-se a falar à larga) era de conhecimento parcial dos comandantes do CA e da Escola, haja visto que o serviço de inteligência havia meses vinha trabalhando para fechar o cerco. A questão do consumo de bebida destilada era coisa secundária, portanto. Serviu apenas de pretexto para algo considerado mais grave e inadmissível para o futuro sargento da Aeronáutica: eliminar dos quadros da Força usuários de drogas.
Para levar adiante o plano, necessitava-se, portanto, de alguma motivação, um pretexto. Assim sendo, alegando que alguns alunos em determinada instrução saíram de forma para beber água sem autorização do sargento instrutor – uma indisciplina insignificante, na verdade – , e que outros haviam feito uso de bebida alcoólica destilada (aguardente) após o toque de silêncio (o que era proibido em qualquer horário no âmbito da Escola) e ainda outros pequenos atos de indisciplina, o comando do CA determinou a suspensão do licenciamento de todos os alunos da Branca naquele final de semana. Contudo, foram abertas algumas exceções como o caso de um colega que tinha horário marcado no dentista. E foi justamente esse colega incumbido pela turma de comprar na cidade uma ou mais garrafas de aguardente. Haviam feito uma vaquinha para esse fim. Outros alunos ficaram de pegar no rancho alguns petiscos a fim de serviriam como tira-gosto, conforme relato de nosso colega Vargas, e que somente agora, décadas depois do episódio, viemos a saber com detalhes.

Aluno Valentim, este humilde blogueiro em 1977 (arquivo pessoal)
A essa altura, os alunos-de-dia às esquadrilhas já estavam devidamente alertados para que em caso de movimentos suspeitos, máxime viessem a ocorrer depois das dez da noite, acionassem de imediato o oficial de permanência ao Corpo. Naquelas vinte e quatro horas, o oficial de permanência ao CA era o tenente Magalhães, justamente o oficial mais doutrinador da Tarjeta Branca. É possível que, já cientes do que vinha a ocorrer, tenha sido escalado justamente o tenente Magalhães, já preparado para as ações que vieram a se suceder. O oficial surgiu naquele início de madrugada surpreendendo a cerca de oito alunos remanescentes que estavam bebendo cachaça na sacada ao fundo do alojamento, número reduzido visto que antes estavam no local de duas dezenas. Vencidos pela ação da branquinha e pelo sono, a maioria foi aos poucos para a cama, restando nos fundos da décima esquadrilha e da décima segunda – lado externo do prédio – os oito remanescentes, os tais que receberam voz de prisão do oficial, acompanhado por quatro sargentos e que permaneciam na esquadrilha a postos, um em cada canto, ao mesmo tempo em que outros oficiais e sargentos lacravam os armários.
Humilhados, os colegas receberam ordens de ir marchando com as mãos na cabeça até o prédio do comando do CA. Uma vez lá chegados, foram levados para uma sala contígua à do comandante do Corpo, onde receberam ordem para que se despissem e ficassem deitados de costas, pernas e braços abertos. Uma posição pra lá de constrangedora. Decorrido algum tempo, chega ao local o comandante da Tarjeta Branca, o tenente Arrais: “O que houve com vocês, meus meninos?! Ponham já a cueca.” Em traje sumário, foram em seguida, um a um, chamados a uma outra sala para o interrogatório. É fácil supor que diante de tal pressão psicológica todos deduraram os outros colegas, que também estavam no local a tomar cachaça, e não, obviamente só isso, alguns fumando maconha. A cada pouco, um ou mais alunos iam sendo conduzidos ao local, sempre em passo ordinário com as mãos na cabeça. Ao final do processo, finalmente foram identificados os alunos visados, que foram sumariamente licenciados a bem da disciplina da Força Aérea de forma irrecorrível.
Não há como culpar a qualquer um deles pelo fato de dedurarem os colegas. Qualquer um de nós, garotos de dezoito ou dezenove anos, sob tamanha tortura psicológica, certamente abriria o bico. Aqueles caras eram profissionais e sabiam fazer bem o que se propunham. É também de se supor que houve alguém a dar o serviço, um entregão, um traíra. Caso contrário, dificilmente o comando teria posto em execução plano semelhante.
Alunos Jardim (com o fuzil) e Eduardo (Foto: aluno Jardim)
O episódio da expulsão sumária de nossos colegas foi para nós, os mais bobinhos, grande surpresa, e a maioria de nós se quedou atônita, chocada com esse triste caso. Cheguei a escrever uma carta de consolação a um deles, vizinho próximo de armário, não obtendo resposta. Dizem mesmo que até algumas cartas eram abertas pelo serviço de informações (era assim que se denominavam os atuais serviços de inteligência).
É fato que consumo de tóxico era coisa abominável naquela época, que dava desligamento. Tão abominável quanto pederastia, transgressão grave de natureza desonrosa. Nada havia a ser feito diferente do que foi.

Voltando às minhas agruras

Ao verificar a previsão de escala que ficava afixada no quadro de avisos da esquadrilha, dei um suspiro de alívio por não ver o meu nome para aluno de dia; fui escalado apenas de aluno auxiliar, ou seja, ficaria à sombra. Legal. O serviço de aluno auxiliar era mais discreto, menos visível à turma que não perdoava um deslize sequer, menos exposto à supervisão dos sargentos e oficiais.
Como tudo no meu caso, não estar escalado assim de cara, mal iniciado o semestre, era muito bom para ser verdade. No outro dia (talvez com o dedo do aluneante para proteger a algum colega) o sargento alterou a escala alegando uma gripe repentina que acometeu o aluno originalmente escalado.
Sobrou pra quem? Sim, sobrou exatamente para mim e o serviço já seria no dia seguinte, sem nenhum tempo hábil para conseguir uma troca. Não tive tempo para treinar, e (para dizer a verdade) nem isso me ocorreu. Não treinei nem ninguém se encarregou de treinar-me para a missão, principalmente para a solenidade de passagem de serviço, a qual contaria com a presença de toda a oficialidade do Corpo de Alunos, além dos suboficiais e sargentos.

Primeiro-sargento Rodrigues, o terrível Caveirinha (fonte: O Especialista em Revista)
Não é nem preciso dizer que foi tudo um grande fiasco. As pernas tremiam mais que vara verde e o rosto transpirava mais que tampa de chaleira. As bandeiras foram hasteadas em dissonância com a marcha-batida tocada pelo corneteiro, sobrando alguns segundos de acordes quando todas elas já estavam lá no topo dos respectivos mastros; gaguejei ao pronunciar as palavras de assunção do serviço; e no desfile, fiz a continência e o olhar-à-direita fora do tempo certo. O resultado é que levei uma sonora bronca do major Pacheco durante a solenidade, deixando-me mais nervoso ainda.
Aquelas vinte e quatro horas foram longas, de forma que senti grande alívio quando, finalmente, passei a bola ao companheiro que assumiria no dia seguinte.
Passados alguns dias, percebi uma espécie de solidariedade tácita da turma. Quase ninguém fez referência ao triste episódio por mim protagonizado, poupando-me de dissabores adicionais. Já era suficiente aquela dose de humilhação sofrida. Uma razão certamente para o silêncio aliviante era que cada um tinha em conta a possibilidade de ser o próximo a estar na minha pele, isso em relação aos menos experientes, grupo no qual eu estava incluso. Com relação aos mais experientes, houve sabedoria em compreender a situação de um garoto ingênuo e inexperiente como eu.
Exceção desse episódio, tudo corria dentro da normalidade e o semestre fluía com rapidez. Veio o jantar dos cem dias.
Terminava para nós o período letivo, a exceção de quem ficou pendente em alguma matéria. Não era o meu caso, pois, graças ao bom Deus, não tive problema algum na parte intelectual naquele semestre. Era só esperar o dia treze de julho e receber as tão sonhadas insignias de terceiro-sargento. Enquanto isso nossas futuras unidades nos esperavam, e a Escola já se preparava para receber a tarjeta Branca que nos sucederia nos dois anos seguintes.
Vieram então os treinamentos, e sobre eles ficaram marcantes em minha memória as vozes de comando do sargento Júnior quando dizia: “Alinha, moçada, é doze a doze. Doze a doze. Alinha, moçada!”. A turma o imitava exagerando a sua voz, fazendo-a mais fina do que realmente era. Paralelamente ocorriam todas as providências relativas à formatura em si, o que incluía provar as peças de uniforme do enxoval e identificar-se visando as novas carteiras de identidade de sargento. Enquanto isso, nossos sargenteantes já corriam as 462 fichas de desimpedimento pelas diversas seções e departamentos, pegando os respectivos “nada deve”.
Em breve chegaria o tão sonhado momento de aquela turma decolar, aproando em direção aos hangares, às oficinas, aos destacamentos, às torres de controle, aos almoxarifados, às companhias de infantaria e de polícia, aos canteiros de obras, aos hospitais, às seções administrativas e aos gabinetes, cada um desempenhando a sua especialidade nos diferentes rincões deste Brasil. Estava próxima a hora de transpormos o portão daquele grande jardim.

Véspera da formatura

Chegamos ao dia 12 de julho, aquela quinta-feira véspera do grande e esperado dia.

Havia ordens severas para se coibirem os excessos que geralmente aconteciam nessas datas, a julgar pela experiência do que ocorria nas turmas antecedentes. Era comum em uma ou outra esquadrilha, quando não em todas, rolar muita birita, ingrediente necessário à inevitável festa da última noite como aluno da Escola de Especialistas, noite esta que já estava assinado o boletim de promoção e o formando já estava de posse de sua cobiçada identidade de cor castanha.

Um dos sargentos que pernoitariam junto aos formandos com a incumbência de manter a devida ordem era o sargento Tarcísio, também conhecido na Tarjeta Branca como sargento Buceta, pela excessiva frequência em que pronunciava esse nome. Ora, quem agora estiver lendo estas linhas, mas que não tenha vivido aquela experiência de turma, provavelmente iria compreender que o sargento Buceta estava ali com a intenção férrea de não permitir o derrame de cachaça, que costumava ocorrer geralmente nas noites que antecediam as formaturas. É certo que ele tinha ordens expressas nesse sentido, não só ele como os outros sargenteantes. É bem possível – podemos imaginar – que tenha dito a seu comandante “Sim, senhor. Deixe comigo” quando este, ainda na cabeça o episódio ocorrido seis meses antes, lhe dera severas ordens nesse sentido.
Ledo engano, e o “sim, senhor” nesse caso era somente da boca pra fora. Dias antes, Buceta tinha previamente sondado os alunos cearenses – e o Ceará, como é sabido, é um Estado famoso por fabricar cachaças de boa qualidade -, e encomendado deles a famosa água que passarinho não bebe. O produto chegaria ao CA por meio dos parentes que viriam para a formatura de seus filhos, sobrinhos ou irmãos. Não sei como burlaram a revista de armário que antecedeu à noite, mas quando se quer algo sempre se dá um jeito.
Abertos os armários, ainda lembro da cara de surpresa que me fez o tenente Arrais ao notar que o meu era forrado de fotos de mulheres peladas, que eu recortara da Status, publicação da qual eu era colecionador. “Você tem uma bela coleção, aluno”, disse ele balançando a cabeça com ar reprovador. Alguns colegas trouxeram garrafas de Chave de Ouro, Ypioca e de outras marcas afamadas, e das quais Tarcísio era profundo conhecedor – e, principalmente, consumidor. Naquela noite muito formando não dormiu ou porque participava da festa ou mesmo pela total ausência do sagrado silêncio noturno. Na esquadrilha vizinha ainda notei quando um grupo, já sob os efeitos da manguaça, erguia o sargento Tarcísio acima da cabeça sacudindo-o para cima, alegres; gritavam em uníssono: “Bucetinha, Bucetinha, …!”. Era uma cena à semelhança de um técnico de futebol sendo erguido por seus jogadores que festejam um título de campeão. Até aquele momento eu não tinha plena ciência do quanto Tarcísio era popular entre a turma.

Segundo-sargento Tarcísio, o popular sargento Buceta (fonte: O Especialista em Revista)
Em outra esquadrilha, quando Tarcísio ali chegou e também degustou da purinha em companhia dos formandos, vários deles, os mais “mamados”, fizeram um trenzinho no vão central do alojamento e cantaram em coro a seguinte cantiga, que era sucesso naquele ano:

Tá com medo tabaréu?
É de linha, de carretel
Tá com medo tabaréu?
É de linha, de carretel

Você encosta, ela estica
Tira a mão da minha pipa
Que eu quero soltar

Chega pra lá
Assim não dá

Minha pipa é voadora
Minha pipa tá no ar

Ah, ah, ah, minha pipa tá no ar
Ah, ah, ah, minha pipa tá no ar

Tem rabo grande
Tem linha grossa
Com o meu cerol não há quem possa
Não encosta, não encosta
Com o meu cerol não há quem possa

Tá com medo tabaréu?
É de linha, de carretel
Tá com medo tabaréu?
É de linha, de carretel

 
Houve colegas que heroicamente conseguiram permanecer em pé até que o corneteiro tocasse o fora-de-forma, seguido da tão esperada, tradicional e emocionante revoada de quepes.

A formatura

Jantar dos 100 dias
Naquela sexta-feira nebulosa (climaticamente falando, claro) e tão esperada por todos nós, recebi finalmente as insígnias tão cobiçadas e pelas quais tanto sofri naqueles dois longos anos.
Dos detalhes da solenidade em si pouco ou nada recordo, vez que minha mente se concentrava no filme daqueles dois anos. Nunca mais aquele boi-ralado, nunca mais Caveirinha, nunca mais o Sapão nem o Cavalo-de-aço, nunca mais banho frio, nunca mais aquela ralação toda, mosquetão, nunca mais ter apenas quinze minutos para tudo. Adeus RPM, adeus apostilas… A mente viajava pelas intermináveis e exaustivas instruções de ordem unida, ocasião em que penávamos nas mãos do Caveirinha ou do sargento Mathias,… os abomináveis serviços de plantão ou de sentinela no sofrido horário de duas às quatro, as apreensões acerca das instruções teóricas e seus exames, os traumas sofridos quando do desligamento de colegas que nos eram caros, independente das razões que os levaram a se separar de nós.

Em cada uma de nossas mentes rolava um filme particular. Nós conseguimos. Eu consegui!

Finalmente o grande dia
Por outro lado, a aumentaria a responsabilidade – era o que eles nos diziam nas sessões de doutrinamento; eu porém insistia em nem pensar nisso. Deixaria para depois preocupar-me com a responsabilidade; cada perrengue no seu dia – era o meu lema. Na unidade em que eu viria a ser classificado – esse era o termo técnico correto – haveria outras obrigações e cobranças, a respeito das quais somente lá é que pensaria em delas tomar conhecimento e resolvê-las. Nenhum de nós seria mais conduzido, como acontecia na Escola em que para tudo havia um comandamento de alguém, mas sim exigidos em iniciativas, devendo por em prática o que foi ensinado naqueles dois anos. Sobre esta nova fase, a vida viria a me exigir muito também muito durante mais vinte e oito anos, e aquele jovem de dezoito anos não tinha a mínima ideia do que lhe esperava. Essa era uma grande verdade. Muito mais que a vida profissional, a particular, para a qual não existe escola, sim me exigiria muito mais ainda, levando-me a experimentar situações inimagináveis para aquele garoto ainda. Estaríamos realmente prontos?
Ordinário, marche!!!

Mas e a Escola?

De tudo que ficou em meu espírito indelevelmente estampado na mente, diria que o companheirismo foi a característica mais marcante em todos nós, salvo raríssimas exceções.
Este escriba nunca mais veria a todos reunidos novamente. Foram para mim ocasiões de festa quando, mais tarde, em Anápolis, Boa Vista, Manaus, Belém, Brasília, Belo Horizonte, Belém novamente e finalmente Curitiba, eventualmente viria a rever a um ou a outro companheiro, um outrora jovem como eu daquela Guaratinguetá daquele final de década. Jamais todos nós estaríamos reunidos novamente. Nunca mais.
A Escola e aquela turma jamais saíram da minha mente e de meus olhos, como diziam Lenon e MacCartney. Alguns dos colegas já estão na eternidade; outros, por razões e circunstâncias diversas, desvincularam-se da Força, aproando para outros horizontes, mais amplos, largos e distintos. Muitos deles hoje são profissionais liberais ou empresários bem-sucedidos; há ainda os que seguiram a carreira de servidores do Estado, bem melhor e justamente remuneradas; outros são professores – até poetas. A maioria deles, porém, permaneceu na Força – assim como este escriba – como especialistas ou em outros quadros -, trilhando os caminhos que a Força preconizava, e que foram a razão principal daqueles dois longos anos.
Sim, foi bela essa convivência de distintas raças, credos, origens, sotaques, cultura… Sim, é verdade que uma parcela minoritária porém significativa da turma era constituída de colegas mais experientes. Olímpio, Mário Luiz, Roque, Hudson, Valério, Carlito… estavam alguns degraus acima na escada da vida em relação a garotos imberbes como o Hydalgo, o Nobre, o W. Alvarez, o Lacerda, o Montanholi (saudoso Montanholi!), o Valentim… Não obstantes as diferenças etárias, éramos todos do jardim da infância. Digo assim porque não tínhamos ideia do que o destino nos reservaria para os anos subsequentes àquela grande aventura: aqueles dois anos inesquecíveis. Tempos de luta, tempos bons, tempos que não voltariam jamais, mas que estão presentes em nossos coração e mente.

Capa da revista da turma “O Especialista”, alusiva à turma nº 171

Sim, a Escola!

Voltei ao Berço dos Especialistas, como agora é também chamada a Escola, por duas ocasiões: a primeira em 1997, quando para um curso de instrutor, permanecendo lá por um mês; na segunda vez, por ocasião da formatura de uma das minhas filhas, a Charlene, novembro de 2003. Nessa derradeira oportunidade, em especial, a emoção tomou conta do meu ser. Desta vez me fiz acompanhar de minha mãe e do meu saudoso pai, como uma espécie de paga pela ausência deles em 13 de julho de 1979.
Na véspera daquela formatura, cheguei à Escola, vesti o nono uniforme e dei três voltas na pista olímpica do estádio. A cada volta rememorava trechos daqueles dois anos inesquecíveis, voltando mentalmente a ser novamente aquele garoto ingênuo e simplório.

Charlene, filha deste humilde blogueiro, na véspera de sua formatura, novembro de 2003 (arquivo pessoal)
No mesmo dia da formatura de Charlene, entrei no alojamento que naquele remoto biênio ocupei, e que foi a nona esquadrilha de então. Tudo foi como um filme na minha cabeça ao rever mentalmente toda a turma de vinte e cinco anos antes. A revista de pernoite, o alvoroço do toque de alvorada, o tempo exíguo para tudo, o corre-corre diário, a extraordinária calma e silêncio dos finais de semana, o rancho, os olhares furtivos às filhas das lavadeiras, tudo aquilo voltou ao meu espírito,… lágrimas inevitáveis.

Voltei em 2003 para a formatura de minha filha Charlene, acompanhado de minha mãe e do meu saudoso pai (arquivo pessoal)
Em 2001, fui matriculado noutra Escola, o CIAAR, em Belo Horizonte, onde passei três meses na condição de aluno, uma condição similar à vivida na Escola de Especialistas, embora desta feita com muito mais responsabilidades e vivência. Desta feita, como desafio pessoal, propus-me a ser o primeiro colocado do curso, o Zero Um, uma condição invejável, diferentemente da época de Guará quando enfrentei sérias dificuldades no campo intelectual. E de fato fui o Zero Um, cabendo-me a honra de receber a espada das mãos do ministro da Defesa. Partia então para uma outra etapa da minha carreira, não mais como praça, mas a nova etapa com iguais e complicados desafios, que, graças ao bom Deus, foram sendo vencidos um a um.
* * *
E ESTA foi a história daquele menino que um dia, sem ter preparação escolar adequada para a missão, fez um concurso, foi aprovado no limite, e que foi buscado lá nas brenhas do Pará pelo Francisco (Que Deus o tenha em Sua glória!); a história de um garoto que viajou de avião pela primeira vez sentado num assento, que era na verdade um vaso sanitário adaptado lá no fundo daquele Bandeirante; um rapaz que quase ficou perdido no Rio de Janeiro, não fosse por obra daquele bilheteiro da Viação Sampaio, uma daquelas pessoas boas que o bom Deus coloca em nosso caminho; a história daquele jovem que chegou a Guaratinguetá em pleno inverno trajando uma camisa fina de verão, e que ultrapassou os portões da Escola num ônibus da “Pássaro Marrom”; que lutou e quase foi reprovado; a história daquele aluno que marchou, correu, suou, superou adversidades.
E vejam que a sequência toda foi quase que por acaso. Eu somente procurava me encaixar nas situações colocadas à minha frente, procurando vencê-las a cada vez. Mas, porque Deus quis, o garoto ingênuo e simplório venceu.
Obrigado, Deus. Obrigado, minha mãezinha, pelas orações. Obrigado, meu pai, pelos conselhos. Obrigado, querida Escola, pois eu jamais te esquecerei, ó meu grande jardim da infância.

Como aluno Zero Um, descerrei a placa da turma. CIAAR em 2001, ao lado de meu pai Manoel Valentim Moreira

Tudo isso ocorreu há mais de trinta e cinco anos, e naquele tempo eu era jovem e bonito. Hoje sou só bonito.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! 

(BLOGUE do Valentim em 13jul.2014, com adaptações)