ENTRE os gaúchos do 1º Grupo de Aviação de Caça, durante a épica e jamais inigualada campanha da FAB na Itália, havia um tenente-aviador todo diferenciado, um tipo diferente, ímpar por suas atitudes e reações, completamente despido de maldade, simplório e verdadeiro na sua maneira de ser, sem inibições nem filtros. Resumindo: Danilo Marques Moura era uma figura simpática com a sua barba espessa, que azulava ao sol e parecia estar sempre por fazer. Para uns, era inteligente e vivo, mas recusava-se terminantemente a pensar durante muito ou mesmo pouco tempo, falando, por isso, de um modo todo peculiar, o que o tornou muito popular entre os fazedores de anedotas, que por sinal, foram muitas a seu respeito. Para outros, o Gaúcho era igualmente inteligente, porém seus gestos e palavras que provocavam gargalhadas eram de caso pensado, não espontâneos. Independentemente do que pensava um ou outro, o Índio usava o dialeto gaúcho com perfeição, exagerando até. Tudo isso, mais outras peculiaridades e finalmente a sua fuga – fato que contrariou todas as regras do bom senso, especialmente o dos técnicos no assunto –, tornaram-no o personagem mais importante do Grupo, pois passou da anedota para a ópera, ou seja a ação. Sim, de fato foi composta uma ópera em alusão à sua saga, uma ópera inédita aos estranhos ao Grupo, em que os poetas do 1º Grupo de Caça imortalizaram os feitos desse gaúcho nativo de Cachoeira do Sul. É sobre esse herói (um herói picaresco ou mesmo um anti-herói, como alguns preferem) que trata este capítulo, que a muitos parecerá uma anedota, mas que é a pura verdade. Daria um excelente filme de ação e drama, caso o Brasil tivesse a tradição dos ianques de promover a imagem de seus heróis. Enquanto o filme ou a série de televisão não vêm, vamos contando aqui a história do Danilo.
Era a manhã de 4 de fevereiro de 1945, um dia de inverno, ensolarado, mas bastante frio, com a neve ainda cobrindo o Norte da Itália, quando ele decolou para a décima primeira missão. Minutos antes, estivera junto a alguns colegas, também pilotos de caça como ele, enquanto fazia os últimos preparativos para voar. Estava bonito, bem uniformizado, barbeado com um capricho até mesmo desnecessário, pois sua barba azulada ficaria oculta, de qualquer jeito, pela máscara de oxigênio. Ora! Afinal, ele era todo diferentão. Parecia pronto para ir ao encontro da buona sera. Vestiu sobre o fardamento caprichado, o macacão de voo forrado de tecido peludo e quente, próprio para grandes altitudes, passando a transpirar imediatamente, o que mais realçava o azul de sua barba. Aquela indumentária era realmente muito quente. Jogou conversa fora com alguns colegas antes de partir.
E nessa manhã…
Ele não regressou! Seu avião foi abatido pela artilharia antiaérea alemã nas proximidades de Treviso muito ao norte de sua base, que ficava em Pisa. Durante algum tempo, ninguém soube exatamente o que acontecera. Pelo rádio, ouviram-no dizer que ia saltar de paraquedas.
LEITURA EXCEPCIONAL: direta, encadeada, culta, atrelada aos fatos, esclarecedora e que contempla o mais interessante momento da história de nossa sociedade brasileira: Os anos 50, os anos dourados, fim do Getulismo, mas ainda sob o signo do: “sabe com quem está falando”?… Uma grande sacada a obra do paraense Antonio Valentim. Joan Castro Alves
O LIVRO faz uma revisão do célebre ‘ CRIME DO SACOPÃ ‘, em 1952 , no Rio de Janeiro, quando foi assassinado o bancário Antonio Arsenio de Lemos , tendo como protagonista do enrêdo , o Tenente Bandira ( da FAB ) o autor trás ao leitor testemunhas e evidências contra o acusado , ao mesmo tempo denunciando falhas nos processos investigativos e processuais, o que conduz o leitor à certeza de um lamentável erro judiciário. Longo trabalho de pesuisa, resultou num excelente livro . Loisy Varêda
MAGNÍFICO! Recomendo. O autor revisitou um crime da década de 50 e apresentou com uma riqueza de detalhes os fatos ocorridos e omitidos, revelando a injustiça cometida. Leitura fluida, instigante e interessante que mistura diferentes formas de linguagem, que torna o texto elegante e moderno. Superrecomendo!! Charlene Aieta
Valentim, Acabei de ler o excelente “Crime do Sacopã”. Adolescente, acompanhei a luta de Tenório Cavalcanti em favor de Bandeira, que sempre me pareceu inocente. Parabéns pelo tema e pesquisa. Grande abraço. Alcides Alcântara
LIVRO muito bom! O autor retorna aos anos 50 para, com muita competência, abordar o Crime do Sacopã, assassinato do bancário Afrânio de Lemos, que mobilizou a sociedade carioca da época. Na realidade foram dois crimes: o assassinato de Afrânio e a condenação do ten. Bandeira, bode expiatório de figurões da República. Valentim fez um excelente trabalho de pesquisa. Parabéns ao autor. Alcides
Um julgamento com parcialidade.Muito bem escrito com riquezas de detalhes. O autor infere na sua obra de como os meandros do poder pode significar tendências arguciosas para atender a objetivos espúrios praticados por agentes públicos. Carlos Braga
Sensacional. Recomendo!!
Excelente obra escrita com maestria pelo Autor. Fatos históricos relevantes que mobilizaram a opinião pública nos anos 50. Embora, bastante difundido, o Crime de Sacopã, Valentim agrega muitos elementos a partir de extensa pesquisa, transformando esta obra em leitura extremamente interessante e obrigatória. Álvaro Markoski
O livro se encontra à venda nas seguintes plataformas digitais:
TU NÃO LESTE errado, amigo leitor. Por coincidência, não mais que coincidência, nascia há 95 anos Alberto Jorge Franco Bandeira, o tenente Bandeira, que se celebrizou como acusado de ter matado o bancário Afrânio Arsênio Lemos. De larga repercussão na época, o episódio ficou conhecido como O Crime do Sacopã.
Era noite de 6 de abril de 1952 quando, próximo ao elegante Clube dos Caiçaras, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, ouviram-se três tiros de revólver. Em seu Citroën negro, Afrânio, que também era automobilista, agonizante, foi levado pelo algoz à Ladeira do Sacopã, no lado oposto da Lagoa, onde catorze coronhadas completaram o serviço. Lá, no dia seguinte, por volta das 7 da manhã, o carro chamava a atenção de transeuntes por estar em plena luz do dia com os faróis acesos. Guardava o corpo de seu dono, de joelhos e cabeça encostada no assento, como a implorar clemência.
Acionada a polícia, os agentes acharam no porta-luvas do automóvel um retrato autografado de Marina de Andrade, que havia sido namorada de Afrânio, mas que na ocasião namorava o tenente-aviador Bandeira. Foi achado também um caderninho com cinco nomes e telefones de outras mulheres, item ignorado pelas autoridades. Pressionada pela opinião pública, a polícia logo achou o culpado: Bandeira.
A PRETA entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa rodeada de gente, e falou baixinho à senhora. Parece que lhe pedia alguma cousa urgente, porque a senhora levantou-se logo.— Ficamos esperando, D. Adelaide? — Não espere, não, Sr. Rangel; vá continuando, eu entro depois.Rangel era o leitor do livro de sortes. Voltou a página, e recitou um título: “Se alguém lhe ama em segredo.” Movimento geral; moças e rapazes sorriram uns para os outros. Estamos na noite de São João de 1854, e a casa é na rua das Mangueiras. Chama-se João o dono da casa, João Viegas, e tem uma filha, Joaninha. Usa-se todos os anos a mesma reunião de parentes e amigos, arde uma fogueira no quintal, assam-se as batatas do costume, e tiram-se sortes. Também há ceia, às vezes dança, e algum jogo de prendas, tudo familiar. João Viegas é escrivão de uma vara cível da Corte.— Vamos. Quem começa agora? disse ele. Há de ser D. Felismina. Vamos ver se alguém lhe ama em segredo.D. Felismina sorriu amarelo. Era uma boa quarentona, sem prendas nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das pálpebras devotas. Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Felismina era o modelo acabado daquelas criaturas indulgentes e mansas, que parecem ter nascido para divertir os outros. Pegou e lançou os dados com um ar de complacência incrédula. Número dez, bradaram duas vozes. Rangel desceu os olhos ao baixo da página, viu a quadra correspondente ao número, e leu-a: dizia que sim, que havia uma pessoa, que ela devia procurar domingo, na igreja, quando fosse à missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina, que sorriu com desdém, mas interiormente esperançada.Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte de cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os óculos e limpava-os com muito vagar na ponta do lenço de cambraia, — ou por ser cambraia, — ou por exalar um fino cheiro de bogari. Presumia de grande maneira, e ali chamavam-lhe “o diplomático”.— Ande, seu diplomático, continue.
Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido em percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa. Namorava alguma? Vamos por partes.
Era solteiro, por obra das circunstâncias, não de vocação. Em rapaz teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo apareceu-he a comichão das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celibato até os quarenta e um anos, em que o vemos. Cobiçava alguma noiva superior a ele e à roda em que vivia, e gastou o tempo em esperá-la. Chegou a freqüentar os bailes de um advogado célebre e rico, para quem copiava papéis, e que o protegia muito. Tinha nos bailes a mesma posição subalterna do escritório; passava a noite vagando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras, devorando com os olhos uma multidão de espáduas magníficas e talhes graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Saía dali excitado e resoluto. Em falta de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver algumas das primeiras moças da cidade. Também era certo no saguão do paço imperial, em dia de cortejo, para ver entrar as grandes damas e as pessoas da corte, ministros, generais, diplomatas, desembargadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens. Voltava da festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente, capaz de arrebatar de um lance a palma da fortuna.
O pior é que entre a espiga e a mão há o tal muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo, raptava mulheres e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo mesmo, ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Chegou ao extremo de aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao voltar da parada no largo do Paço; imaginou para isso uma revolução, em que derramou algum sangue, pouco, e uma ditadura benéfica, em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era pacato e discreto.
Aos quarenta anos desenganou-se das ambições; mas a índole ficou a mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou noiva. Mais de uma o aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas, à força de circunspecção. Um dia, reparou em Joaninha, que chegava aos dezenove anos e possuía um par de olhos lindos e sossegados, — virgens de toda a conversação masculina. Rangel conhecia-a desde criança, andara com ela ao colo, no Passeio Público, ou nas noites de fogo da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro lado, as relações dele na casa eram tais, que podiam facilitar-lhe o casamento; e, ou este ou nenhum outro.
Desta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha; bastava esticar o braço com algum esforço, para arrancá-la do pé. Rangel andava neste trabalho desde alguns meses. Não esticava o braço, sem espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha alguém, disfarçava e ia-se embora. Quando chegava a esticá-lo, acontecia que uma lufada de vento meneava a espiga ou algum passarinho andava ali nas folhas secas, e não era preciso mais para que ele recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão entranhava-se-lhe, causa de muitas horas de angústia, a que seguiam sempre melhores esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira carta de amor, disposto a entregá-la. Já teve duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre espaçando; a noite é tão comprida! Entretanto, continua a ler as sortes, com a solenidade de um áugur.
Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou falam ao mesmo tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda à roda da mesa com uma pena, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas está ansioso por um amigo, que se demora, o Calisto. Onde se meteria o Calisto? — Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas.
Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a ceia. Toda a gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa a filha do escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namorados. Ela foi à janela, por alguns instantes, enquanto se preparava um jogo de prendas, e ele foi também; era a ocasião de entregar-lhe a carta.
Defronte, numa casa grande, havia um baile, e dançava-se. Ela olhava, ele olhou também. Pelas janelas viam passar os pares, cadenciados, as senhoras com as suas sedas e rendas, os cavalheiros finos e elegantes, alguns condecorados. De quando em quando, uma faísca de diamantes, rápida, fugitiva, no giro da dança. Pares que conversavam, dragonas que reluziam, bustos de homem inclinados, gestos de leques, tudo isso em pedaços, através das janelas, que não podiam mostrar todo o salão, mas adivinhava-se o resto. Ele ao menos conhecia tudo, e dizia tudo à filha do escrivão. O demônio das grandezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas arlequinadas no coração do nosso homem, e ei-lo que tenta seduzir também o coração da outra.
— Conheço uma pessoa que estaria ali muito bem, murmurou Rangel.
E Joaninha, com ingenuidade: — Era o senhor.
Rangei sorriu lisonjeado, e não achou que dizer. Olhou para os lacaios e cocheiros, de libré, na rua conversando em grupos ou reclinados no tejadilho dos carros. Começou a designar carros: este é do Olinda, aquele é do Maranguape; mas aí vem outro, rodando, do lado da rua da Lapa, e entra na rua das Mangueiras. Parou defronte: salta o lacaio, abre a portinhola, tira o chapéu e perfila-se. Sai de dentro uma calva, uma cabeça, um homem, duas comendas, depois uma senhora ricamente vestida; entram no saguão, e sobem a escadaria, forrada de tapete e ornada embaixo com dois grandes vasos.
— Joaninha, Sr. Rangel…
Maldito jogo de prendas! Justamente quando ele formulava, na cabeça, uma insinuação a propósito do casal que subia, e ia assim passar naturalmente à entrega da carta… Rangel obedeceu, e sentou-se defronte da moça. D. Adelaide, que dirigia o jogo de prendas, recolhia os nomes; cada pessoa devia ser uma flor. Está claro que o tio Rufino, sempre gaiato, escolheu para si a flor da abóbora. Quanto ao Rangel, querendo fugir ao trivial, comparou mentalmente as flores, e quando a dona da casa lhe perguntou pela dele, respondeu com doçura e pausa: — Maravilha, minha senhora.
— O pior é não estar cá o Calisto! suspirou o escrivão.
— Ele disse mesmo que vinha? — Disse; ainda ontem foi ao cartório, de propósito, avisar-me de que viria tarde, mas que contasse com ele: tinha de ir a uma brincadeira na rua da Carioca…
— Licença para dous! bradou uma voz no corredor.
— Ora graças! está aí o homem! João Viegas foi abrir a porta; era o Calisto, acompanhado de um rapaz estranho, que ele apresentou a todos em geral: — “Queirós, empregado na Santa Casa; não é meu parente, apesar de se parecer muito comigo; quem vê um, vê outro…” Toda a gente riu; era uma pilhéria do Calisto, feio como o diabo, — ao passo que o Queirós era um bonito rapaz de vinte e seis a vinte e sete anos, cabelo negro, olhos negros e singularmente esbelto. As moças retraíram-se um pouco; D. Felismina abriu todas as velas.
— Estávamos jogando prendas, os senhores podem entrar também, disse a dona da casa. Joga, Sr. Queirós? Queirós respondeu afirmativamente e passou a examinar as outras pessoas. Conhecia algumas, e trocou duas ou três palavras com elas. Ao João Viegas disse que desde muito tempo desejava conhecê-lo, por causa de um favor que o pai lhe deveu outrora, negócio de foro. João Viegas não se lembrava de nada, nem ainda depois que ele lhe disse o que era; mas gostou de ouvir a notícia, em público, olhou para todos, e durante alguns minutos regalou-se calado.
Queirós entrou em cheio no jogo. No fim de meia hora, estava familiar da casa. Todo ele era ação, falava com desembaraço, tinha os gestos naturais e espontâneos. Possuía um vasto repertório de castigos para jogo de prendas, coisa que encantou a toda a sociedade, e ninguém os dirigia melhor, com tanto movimento e animação, indo de um lado para outro, concertando os grupos, puxando cadeiras, falando às moças, como se houvesse brincado com elas em criança.
— D. Joaninha aqui, nesta cadeira; D. Cesária, deste lado, em pé, e o Sr. Camilo entra por aquela porta… Assim, não: olhe, assim de maneira que…
Teso na cadeira, o Rangel estava atônito. Donde vinha esse furacão? E o furacão ia soprando, levando os chapéus dos homens, e despenteando as moças, que riam de contentes: Queirós daqui, Queirós dali, Queirós de todos os lados. Rangel passou da estupefação à mortificação. Era o cetro que lhe caía das mãos. Não olhava para o outro, não se ria do que ele dizia, e respondia-lhe seco. Interiormente, mordia-se e mandava-o ao diabo, chamava-o bobo alegre, que fazia rir e agradava, porque nas noites de festa tudo é festa. Mas, repetindo essas e piores coisas, não chegava a reaver a liberdade de espírito. Padecia deveras, no mais íntimo do amor-próprio; e o pior é que o outro percebeu toda essa agitação, e o péssimo é que ele percebeu que era percebido.
Rangel, assim como sonhava os bens, assim também as vinganças. De cabeça, espatifou o Queirós; depois cogitou a possibilidade de um desastre qualquer, uma dor bastava, mas cousa forte, que levasse dali aquele intruso. Nenhuma dor, nada; o diabo parecia cada vez mais lépido, e toda a sala fascinada por ele. A própria Joaninha, tão acanhada, vibrava nas mãos de Queirós, como as outras moças; e todos, homens e mulheres, pareciam empenhados em servi-lo. Tendo ele falado em dançar, as moças foram ter com o tio Rufino, e pediram que tocasse uma quadrilha na flauta, uma só, não se lhe pedia mais.
— Não posso, dói-me um calo.
— Flauta? bradou o Calisto. Peçam ao Queirós que nos toque alguma coisa, e verão o que é flauta… Vai buscar a flauta, Rufino. Ouçam o Queirós. Não imaginam como ele é saudoso na flauta! Queirós tocou a Casta Diva. Que cousa ridícula! dizia consigo o Rangel — uma música que até os moleques assobiam na rua. Olhava para ele, de revés, para considerar se aquilo era posição de homem sério; e concluía que a flauta era um instrumento grotesco. Olhou também para Joaninha, e viu que, como todas as outras pessoas, tinha a atenção no Queirós, embebida, namorada dos sons da música, e estremeceu, sem saber por quê. Os demais semblantes mostravam a mesma expressão dela, e, contudo, sentiu alguma coisa que lhe complicou a aversão ao intruso. Quando a flauta acabou, Joaninha aplaudiu menos que os outros, e Rangel entrou em dúvida se era o habitual acanhamento, se alguma especial comoção… Urgia entregar-lhe a carta.
Chegou a ceia. Toda a gente entrou confusamente na sala, e felizmente para o Rangel, coube-lhe ficar defronte de Joaninha, cujos olhos estavam mais belos que nunca e tão derramados, que não pareciam os do costume. Rangel saboreou-os caladamente, e reconstruiu todo o seu sonho que o diabo do Queirós abalara com um piparote. Foi assim que tornou a ver-se, ao lado dela, na casa que ia alugar, berço de noivos, que ele enfeitou com os ouros da imaginação. Chegou a tirar um prêmio na loteria e a empregá-lo todo em sedas e jóias para a mulher, a linda Joaninha — Joaninha Rangel — D. Joaninha Rangel — D. Joana Viegas Rangel — ou D. Joana Cândida Viegas Rangel… Não podia tirar o Cândida…
— Vamos, uma saúde, seu diplomático… faça uma saúde daquelas…
Rangel acordou; a mesa inteira repetia a lembrança do tio Rufino; a própria Joaninha pedia-lhe uma saúde, como a do ano passado. Rangel respondeu que ia obedecer; era só acabar aquela asa de galinha. Movimento, cochichos de louvor; D. Adelaide, dizendo-lhe uma moça que nunca ouvira falar o Rangel: — Não? perguntou com pasmo. Não imagina; fala muito bem, muito explicado, palavras escolhidas, e uns bonitos modos…
Comendo, ia ele dando rebate a algumas reminiscências, frangalhos de idéias, que lhe serviam para o arranjo das frases e metáforas. Acabou e pôs-se de pé. Tinha o ar satisfeito e cheio de si. Afinal, vinham bater-lhe à porta. Cessara a farandolagem das anedotas, das pilhérias sem alma, e vinham ter com ele para ouvir alguma cousa correta e grave. Olhou em derredor, viu todos os olhos levantados, esperando. Todos não; os de Joaninha enviesavam-se na direção do Queirós, e os deste vinham esperá-los a meio caminho, numa cavalgada de promessas. Rangel empalideceu. A palavra morreu-lhe na garganta; mas era preciso falar, esperavam por ele, com simpatia, em silêncio.
Obedeceu mal. Era justamente um brinde ao dono da casa e à filha. Chamava a esta um pensamento de Deus, transportado da imortalidade à realidade, frase que empregara três anos antes, e devia estar esquecida. Falava também do santuário da família, do altar da amizade, e da gratidão, que é a flor dos corações puros. Onde não havia sentido, a frase era mais especiosa ou retumbante. Ao todo, um brinde de dez minutos bem puxados, que ele despachou em cinco e sentou-se.
Não era tudo. Queirós levantou-se logo, dois ou três minutos depois, para outro brinde, e o silêncio foi ainda mais pronto e completo. Joaninha meteu os olhos no regaço, vexada do que ele iria dizer; Rangel teve um arrepio.
— O ilustre amigo desta casa, o Sr. Rangel — disse Queirós, — bebeu às duas pessoas cujo nome é o do santo de hoje; eu bebo àquela que é a santa de todos os dias, a D. Adelaide.
Grandes aplausos aclamaram esta lembrança, e D. Adelaide, lisonjeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha não ficou em cumprimentos. — Mamãe! mamãe! exclamou, levantando-se; e foi abraçá-la e beijá-la três e quatro vezes; — espécie de carta para ser lida por duas pessoas.
Rangel passou da cólera ao desânimo, e, acabada a ceia, pensou em retirar-se. Mas a esperança, demônio de olhos verdes, pediu-lhe que ficasse, e ficou. Quem sabe? Era tudo passageiro, cousas de uma noite, namoro de São João; afinal, ele era amigo da casa, e tinha a estima da família; bastava que pedisse a moça, para obtê-la. E depois esse Queirós podia não ter meios de casar. Que emprego era o dele na Santa Casa? Talvez alguma cousa reles… Nisto, olhou obliquamente para a roupa de Queirós, enfiou-se-lhe pelas costuras, escrutou o bordadinho da camisa, apalpou os joelhos das calças, a ver-lhe o uso, e os sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas provavelmente gastava tudo consigo, e casar era negócio sério. Podia ser também que tivesse mãe viúva, irmãs solteiras… Rangel era só.
— Tio Rufino, toque uma quadrilha.
— Não posso; flauta depois de comer faz indigestão. Vamos a um víspora.
Rangel declarou que não podia jogar, estava com dor de cabeça: mas Joaninha veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de sociedade. — “Meia coleção para o senhor, e meia para mim”, disse ela, sorrindo; ele sorriu também e aceitou. Sentaram-se ao pé um do outro. Joaninha falava-lhe, ria, levantava para ele os belos olhos, inquieta, mexendo muito a cabeça para todos os lados. Rangel sentiu-se melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem. Ia marcando à toa, esquecendo alguns números, que ela lhe apontava com o dedo, — um dedo de ninfa, dizia ele, consigo; e os descuidos passaram a ser de propósito, para ver o dedo da moça, e ouvi-la ralhar: “O senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o nosso dinheiro…” Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas não estando declarados, era natural que ela a recebesse com espanto e estragasse tudo; cumpria avisá-la. Olhou em volta da mesa: todos os rostos estavam inclinados sobre os cartões, seguindo atentamente os números. Então, ele inclinou-se à direita, e baixou os olhos aos cartões de Joaninha, como para verificar alguma coisa.
— Já tem duas quadras, cochichou ele.
— Duas, não; tenho três.
— Três, é verdade, três. Escute…
— E o senhor? — Eu duas.
— Que duas o quê? São quatro.
Eram quatro; ela mostrou-lhas inclinada, roçando quase a orelha pelos lábios dele; depois, fitou-o rindo e abanando a cabeça: “O senhor! o senhor!” Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era tão doce, e a expressão tão amiga, que ele esqueceu tudo, agarrou-a pela cintura, e lançou-se com ela na eterna valsa das quimeras. Casa, mesa, convivas, tudo desapareceu, como obra vã da imaginação, para só ficar a realidade única, ele e ela, girando no espaço, debaixo de um milhão de estrelas, acesas de propósito para alumiá-los.
Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram todos para a janela ver sair os convidados do baile fronteiro. Rangel recuou espantado. Viu um aperto de dedos entre o Queirós e a bela Joaninha. Quis explicá-lo, eram aparências, mas tão depressa destruía uma como vinham outras e outras, à maneira das ondas que não acabam mais. Custava-lhe entender que uma só noite, algumas horas bastassem a ligar assim duas criaturas; mas era a verdade clara e viva dos modos de ambos, dos olhos, das palavras, dos risos, e até da saudade com que se despediram de manhã.
Saiu tonto. Uma só noite, algumas horas apenas! Em casa, aonde chegou tarde, deitou-se na cama, não para dormir, mas para romper em soluços. Só consigo, foi-se-lhe o aparelho da afetação, e já não era o diplomático, era o energúmeno, que rolava na casa, bradando, chorando como uma criança, infeliz deveras, por esse triste amor do outono. O pobre-diabo, feito de devaneio, indolência e afetação, era, em substância, tão desgraçado como Otelo, e teve um desfecho mais cruel.
Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em quem ninguém pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao Queirós, quando este se casou com Joaninha, seis meses depois.
Nem os acontecimentos, nem os anos lhe mudaram a índole. Quando rompeu a guerra do Paraguai, teve idéia muitas vezes de alistar-se como oficial de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que ganhou algumas batalhas e acabou brigadeiro.
01 – No texto dessa página, afirma-se que as crianças e os adolescentes têm, por lei:
“[…] direito à vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária.”
a) Ainda na forma da lei, quem deve garantir esses direitos?
b) Crianças e adolescentes em situação de mendicância nos remete à transgressão (não observância) de quais direitos entre esses destacados? Justifique.
02 – Transcreva os verbos de ligação e os predicativos do sujeito que compõem as orações a seguir, extraídas do texto “A criança em primeiro lugar”.
a) “[…] o adolescente está na faixa entre 12 e 18 anos […].
b) “[…] as crianças e os adolescentes estão sempre em primeiro lugar […].
c) “[…] A lista é grande!”.
03 – Na frase “[…] o adolescente está na faixa entre 12 e 18 anos […]”, o verbo de ligação estar transmite a ideia de um estado permanente (definitivo) ou de um estado transitório (que só dura certo tempo) do sujeito?
– CABRIOLET está aí, sim, senhor, dizia o preto que viera à matriz de S. José chamar o vigário para sacramentar dois moribundos.
A geração de hoje não viu a entrada e a saída do cabriolet no Rio de Janeiro. Também não saberá do tempo em que o cab e o tilbury vieram para o rol dos nossos veículos de praça ou particulares. O cab durou pouco. O tilbury, anterior aos dois, promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos, esperando o freguês do costume. A paciência será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a própria atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo dirá coisas raras sobre os três esqueletos. O cabriolet não teve história; deixou apenas a anedota que vou dizer.
— Dois! – exclamou o sacristão.
— Sim, senhor, dois; nhã Anunciada e nhô Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada! continuou o preto a gemer, andando de um lado para outro, aflito, fora de si.
Alguém que leia isto com a alma turva de dúvidas, é natural que pergunte se o preto sentia deveras, ou se queria picar a curiosidade do coadjutor e do sacristão. Eu estou que tudo se pode combinar neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia deveras; não descreio que ansiasse por dizer alguma história terrível. Em todo caso, nem o coadjutor nem o sacristão lhe perguntavam nada.
Não é que o sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a paróquia de cor; sabia os nomes às devotas, a vida delas, a dos maridos e a dos pais, as prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento das casadas, as saudades das viúvas. Pesquisava tudo; nos intervalos ajudava a missa e o resto. Chamava-se João das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e meão.
“Que Pedrinho e que Anunciada serão esses?” dizia consigo, acompanhando o coadjutor.
Embora ardesse por sabê-los, a presença do coadjutor impediria qualquer pergunta. Este ia tão calado e pio, caminhando para a porta da igreja, que era força mostrar o mesmo silêncio e piedade que ele. Assim foram andando. O cabriolet esperava-os; o cocheiro desbarretou-se, os vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, enquanto o padre e o sacristão entravam e o veículo enfiava pela Rua da Misericórdia. O preto desandou o caminho a passo largo.
Que andem burros e pessoas na rua, e as nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas cabeças, se os têm. A do sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca do Nosso-Pai, embora soubesse adorá-lo, nem da água benta e do hissope que levava; também não era acerca da hora, — oito e quarto da noite, — aliás, o céu estava claro e a lua ia aparecendo. O próprio cabriolet, que era novo na terra, e substituía neste caso a sege, esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês, a não ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhã Anunciada.
“Há de ser gente nova, ia pensando o sacristão, mas hóspede em alguma casa, decerto, porque não há casa vazia na praia, e o número é da do Comendador Brito. Parentes, serão? Que parentes, se nunca ouvi…? Amigos, não sei; conhecidos, talvez, simples conhecidos. Mas então mandariam cabriolet? Este mesmo preto é novo na casa; há de ser escravo de um dos moribundos, ou de ambos.”
Era assim que João das Mercês ia cogitando, e não foi por muito tempo. O cabriolet parou à porta de um sobrado, justamente a casa do Comendador Brito, José Martins de Brito. Já havia algumas pessoas embaixo com velas, o padre e o sacristão apearam-se e subiram a escada, acompanhados do comendador. A esposa deste, no patamar, beijou o anel ao padre. Gente grande, crianças, escravos, um burburinho surdo, meia claridade, e os dois moribundos à espera, cada um no seu quarto, ao fundo.
Tudo se passou, como é de uso e regra, em tais ocasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e ungido, nhã Anunciada também, e o coadjutor despediu-se da casa para tornar à matriz com o sacristão. Este não se despediu do comendador sem lhe perguntar ao ouvido se os dois eram parentes seus. Não, não eram parentes, respondeu Brito; eram amigos de um sobrinho que vivia em Campinas; uma história terrível… Os olhos de João das Mercês escutaram arregaladamente estas duas palavras, e disseram, sem falar, que viriam ouvir o resto — talvez naquela mesma noite. Tudo foi rápido, porque o padre descia a escada, era força ir com ele.
Foi tão curta a moda do cabriolet que este provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe a anedota, que vou acabar já, tão escassa foi ela, uma anedota de nada. Não importa. Qualquer que fosse o tamanho ou a importância, era sempre uma fatia de vida para o sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a despir a sobrepeliz, e a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, enfim, a pé, rua acima, praia fora, até parar à porta do comendador.
Em caminho foi evocando toda a vida daquele homem, antes e depois da comenda. Compôs o negócio, que era fornecimento de navios, creio eu, a família, as festas dadas, os cargos paroquiais, comerciais e eleitorais, e daqui aos boatos e anedotas não houve mais que um passo ou dois. A grande memória de João das Mercês guardava todas as coisas, máximas e mínimas, com tal nitidez que pareciam da véspera, e tão completas que nem o próprio objeto delas era capaz de as repetir iguais. Sabia-as como o padre-nosso, isto é, sem pensar nas palavras; ele rezava tal qual comia, mastigando a oração, que lhe saía dos queixos sem sentir. Se a regra mandasse rezar três dúzias de padre-nossos seguidamente, João das Mercês os diria sem contar. Tal era com as vidas alheias; amava sabê-las, pesquisava-as, decorava-as, e nunca mais lhe saíam da memória.
Na paróquia todos lhe queriam bem, porque ele não enredava nem maldizia. Tinha o amor da arte pela arte. Muita vez nem era preciso perguntar nada. José dizia-lhe a vida de Antônio e Antônio a de José. O que ele fazia era ratificar ou retificar um com outro, e os dois com Sancho, Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com todos. Assim é que enchia as horas vagas, que eram muitas. Alguma vez, à própria missa, recordava uma anedota da véspera, e, a princípio, pedia perdão a Deus; deixou de lho pedir quando refletiu que não falhava uma só palavra ou gesto do santo sacrifício, tão consubstanciados os trazia em si. A anedota, que então revivia por instantes, era como a andorinha que atravessa uma paisagem. A paisagem fica sendo a mesma, e a água, se há água, murmura o mesmo som. Esta comparação, que era dele, valia mais do que ele pensava, porque a andorinha, ainda voando, faz parte da paisagem, e a anedota fazia nele parte da pessoa; era um dos seus atos de viver.
Quando chegou à casa do comendador, tinha desfiado o rosário da vida deste, e entrou com o pé direito para não sair mal. Não pensou em sair cedo, por mais aflita que fosse a ocasião, e nisto a fortuna o ajudou. Brito estava na sala da frente, em conversa com a mulher, quando lhe vieram dizer que João das Mercês perguntava pelo estado dos moribundos. A esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou pedindo desculpas e dizendo que era por pouco tempo; ia passando e lembrara-se de saber se os enfermos tinham ido para o céu, — ou se ainda eram deste mundo. Tudo o que dissesse respeito ao comendador seria ouvido por ele com interesse.
— Não morreram, nem sei se escaparão; quando menos, ela creio que morrerá, concluiu Brito.
— Parecem bem mal.
— Ela, principalmente; também é a que mais padece da febre. A febre os pegou aqui em nossa casa, logo que chegaram de Campinas, há dias.
— Já estavam aqui? perguntou o sacristão, pasmado de o não saber.
— Já; chegaram há quinze dias, — ou quatorze. Vieram com o meu sobrinho Carlos e aqui apanharam a doença…
Brito interrompeu o que ia dizendo; assim pareceu ao sacristão, que pôs no semblante toda a expressão de pessoa que espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse a morder os beiços e a olhar para as paredes, não viu o gesto de espera, e ambos se detiveram calados. Brito acabou andando ao longo da sala, enquanto João das Mercês dizia consigo que havia alguma coisa mais que febre. A primeira ideia que lhe acudiu foi se os médicos teriam errado na doença ou no remédio; também pensou que podia ser outro mal escondido, a que deram o nome de febre para encobrir a verdade. Ia acompanhando com os olhos o comendador, enquanto este andava e desandava a sala toda, apagando os passos para não aborrecer mais os que estavam dentro. De lá vinha algum murmúrio de conversação, chamado, recado, porta que se abria ou fechava. Tudo isso era coisa nenhuma para quem tivesse outro cuidado; mas o nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que não sabia. Quando menos, a família dos enfermos, a posição, o atual estado, alguma página da vida deles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da paróquia.
— Ah! exclamou Brito estacando o passo.
Parecia haver nele o desejo impaciente de referir um caso, — a “história terrível”, que anunciara ao sacristão, pouco antes; mas nem este ousava pedi-la nem aquele dizê-la, e o comendador pegou a andar outra vez.
João das Mercês sentou-se. Viu bem que em tal situação cumpria despedir-se com boas palavras de esperança ou de conforto, e voltar no dia seguinte; preferiu sentar-se e aguardar. Não viu na cara do outro nenhum sinal de reprovação do seu gesto; ao contrário, ele parou defronte e suspirou com grande cansaço.
— Triste, sim, triste, concordou João das Mercês. Boas pessoas, não?
— Iam casar.
— Casar? Noivos um do outro?
Brito confirmou de cabeça. A nota era melancólica, mas não havia sinal da história terrível anunciada, e o sacristão esperou por ela. Observou consigo que era a primeira vez que ouvia alguma coisa de gente que absolutamente não conhecia. As caras, vistas há pouco, eram o único sinal dessas pessoas. Nem por isso se sentia menos curioso. Iam casar… Podia ser que a história terrível fosse isso mesmo. Em verdade, atacados de um mal na véspera de um bem, o mal devia ser terrível. Noivos e moribundos…
Vieram trazer recado ao dono da casa; este pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem deu tempo a que ele se despedisse e saísse. Correu para dentro, e lá ficou cinqüenta minutos. Ao cabo, chegou à sala um pranto sufocado; logo após, tornou o comendador.
— Que lhe dizia eu, há pouco? Quando menos, ela ia morrer; morreu.
Brito disse isto sem lágrimas e quase sem tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo. As lágrimas, segundo referiu, eram do sobrinho de Campinas e de uma parenta da defunta, que morava em Mata-porcos. Daí a supor que o sobrinho do comendador gostasse da noiva do moribundo foi um instante para o sacristão, mas não se lhe pegou a ideia por muito tempo; não era forçoso, e depois se ele próprio os acompanhara… Talvez fosse padrinho de casamento. Quis saber, e era natural, — o nome da defunta. O dono da casa, — ou por não querer dar-lho, — ou porque outra ideia lhe tomasse agora a cabeça, — não declarou o nome da noiva, nem do noivo. Ambas as causas seriam.
— Iam casar…
— Deus a receberá em sua santa guarda, e a ele também, se vier a expirar, disse o sacristão cheio de melancolia.
E esta palavra bastou a arrancar metade do segredo que parece ansiava por sair da boca do fornecedor de navios. Quando João das Mercês lhe viu a expressão dos olhos, o gesto com que o levou à janela, e o pedido que lhe fez de jurar, — jurou por todas as almas dos seus que ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar as confidências alheias, mormente as de pessoas gradas e honradas, como era o comendador. Ao que este se deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a primeira metade do segredo, a qual era que os dois noivos, criados juntos, vinham casar aqui quando souberam, pela parenta de Mata-porcos, uma notícia abominável…
— E foi…? precipitou-se em dizer João das Mercês, sentindo alguma hesitação no comendador.
— Que eram irmãos.
— Irmãos como? Irmãos de verdade?
— De verdade; irmãos por parte de mãe. O pai é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse tudo nem claro, mas jurou que era assim, e eles ficaram fulminados durante um dia ou mais…
João das Mercês não ficou menos espantado que eles; dispôs-se a não sair dali sem saber o resto. Ouviu dez horas, ouviria todas as demais da noite, velaria o cadáver de um ou de ambos, uma vez que pudesse juntar mais esta página às outras da paróquia, embora não fosse da paróquia.
— E vamos, vamos, foi então que a febre os tomou…?
Brito cerrou os dentes para não dizer mais nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro, acudiu depressa, e meia hora depois estava de volta, com a nova do segundo passamento. O choro, agora mais fraco, posto que mais esperado, não havendo já de quem o esconder, trouxera a notícia ao sacristão.
— Lá se foi o outro, o irmão, o noivo… Que Deus lhes perdoe! Saiba agora tudo, meu amigo. Saiba que eles se queriam tanto que, alguns dias depois de conhecido o impedimento natural e canônico do consórcio, pegaram de si e, fiados em serem apenas meios irmãos e não irmãos inteiros, meteram-se em um cabriolet e fugiram de casa. Dado logo o alarma, alcançamos pegar o cabriolet em caminho da Cidade Nova, e eles ficaram tão pungidos e vexados da captura que adoeceram de febre e acabam de morrer.
Não se pode escrever o que sentiu o sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum tempo, com dificuldade. Soube os nomes das pessoas pelo obituário dos jornais, e combinou as circunstâncias ouvidas ao comendador com outras. Enfim, sem se ter por indiscreto, espalhou a história, só com esconder os nomes e contá-la a um amigo, que a passou a outro, este a outros, e todos a todos. Fez mais; meteu-se-lhe em cabeça que o cabriolet da fuga podia ser o mesmo dos últimos sacramentos; foi à cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e descobriu que sim. Donde veio chamar-se a esta página a “anedota do cabriolet”. (Conto Brasileiro)
ORA a curiosidade!
Esse substantivo abstrato, de que os homens (e mulheres também) padecem, tanto pode ser usada para o bem quanto para o mal. Vejam os grandes cientistas e artistas, que dela fazem uso para criar algo, seja para a melhora da humanidade, tornando a vida menos difícil ou seja — no caso destes últimos — para o entretenimento ou lúdico, levando ao público o riso e as emoções, como antídotos para igualmente amenizar os duros fardos que oprimem a nossa existência. De curioso, o sujeito ao levar à mão a um buraco sujeita-se a encontrar uma serpente; a mesma curiosidade, todavia, pode conduzir o curioso a uma grande invenção. Há um tipo de curioso, porém, que em nada contribui: aquele cuja curiosidade é ocupar-se da vida alheia.
Pode ser que Joaquim Maria Machado de Assis tenha deixado de lado um ou outro caráter do gênero humano — ou mesmo esquecido — ao compor seus singulares contos. O Bruxo do Cosme Velho, em sua vastíssima obra literária, apresenta-nos o homem universal com seus conflitos e interesses. Aqui, nesta página do BLOGUEdoValentim!, apontamos João das Mercês, o sacristão, um sujeito que, aproveitando-se de seu ofício, padece da coceira da curiosidade. João, tendo como encargo secundar o pároco local, busca a todo custo assenhorear-se dos segredos e pecados dos homens e mulheres da paróquia. Esse incansável e curioso (em ambos os sentidos do vocábulo) personagem machadiano não há de sossegar a alma enquanto não vier a conhecer tintim por tintim os pecados desse casal a que o coadjutor é urgentemente chamado a socorrer.