A SAGA DO TENENTE DANILO NA ITÁLIA!

Continuação da postagem de 11 de dezembro de 2023.

DANILO ainda não havia encontrado um meio de atravessar o rio. Contou ele ingenuamente que teve a seguinte ideia: resolveu seguir aquela margem do rio, sempre pelo lado norte e sempre em direção ao oeste, buscando a nascente do Pó, onde naturalmente ele seria tão estreito a ponto de ser possível atravessá-lo. O Pó nascia quase na França. Caminhou e, à medida que entardecia, o frio se intensificava; seus joelhos doíam. No dia seguinte, viu que existia uma aldeia próxima e decidiu seguir na direção do vilarejo. Na terceira casa à beira da estrada estava um italiano, igual a tantos outros, a rachar lenha. Rachava a lenha e ato contínuo a empilhava a seu lado. O Índio, exaustíssimo, moral abatida e desanimado, sentou-se ao lado da pilha de lenha rachada e ficou a observar o camponês. Ele manuseava o machado e os pedaços de lenha iam sendo jogados para a pilha ao lado. Esse trabalho fez Danilo recordar os seus afazeres de campo, na propriedade do seu Gilberto Moura, lembranças familiares que se tornavam frequente e que lhe davam força para seguir lutando com todas forças visando superar aqueles obstáculos. Mãe, pai, irmãs: na verdade, não tinha certeza se iria revê-los. Quanto aos irmãos, todos os três estavam na Itália peleando naquela maldita guerra: Nero Moura, que era seu comandante, Osmar Moura, major do Exército e ele, o mais jovem, como segundo-tenente-aviador da reserva convocada.

O dia do pagamento se aproximava. Tinha que chegar a tempo.

O italiano rachava lenha. Os minutos se passavam e nenhum dos dois dizia uma palavra. O machado subia e descia sobre a lenha e as achas avolumavam o monte. Por fim, o aldeão pediu-lhe o que desejava. Danilo entrou com o enredo de sempre, a casa bombardeada, arruinada… Finda a história, pediu-lhe um copo d’água, comida e pouso. O lenhador o escutou com toda a atenção, dando-lhe vinho, comida e acolhida em sua casa. Às poucas perguntas que se seguiram, o Gaúcho procurava dar respostas curtas e o italiano não insistia. À noite, além das estrelas de uma bela noite de inverno italiano, mais intensamente brilhava a estrela daquele rio-grandense singular, simbolizada na pessoa daquele camponês bondoso. Chamando Danilo a um canto, o italiano lhe disse simplesmente que acreditaria na sua história, não fossem as botinas. As botinas militares, que o Gaúcho conservava consigo por conta do rigoroso frio, não era própria de um pobre-diabo arruinado pela guerra. Nosso anti-herói sentiu-se perdido: fora descoberto. E agora? Logo seria entregue aos alemães – pensou ele naquele instante. O italiano, porém, lhe desfez as dúvidas inquietantes. Danilo estava em boas mãos, nas mãos de um antifascista, nada tendo a temer. Danilo teve que abrir o jogo, pois naquele homem simples, um pedreiro de aldeia pobre – era pedreiro e não camponês, como o Índio supunha até então – residia um dos muitos heróis anônimos daquela guerra insana. Diante do inesperado, contou-lhe toda a sua história, desde o abate de seu avião. O pedreiro o tranquilizou, dizendo-lhe que fosse dormir. Pela primeira vez, em muitas noites, o Índio teve uma cama com lençóis, cobertas grossas e um colchão macio e repousante. Tratariam do caso na manhã seguinte, que dormisse tranquilo.

Acordou já bastante tarde na manhã posterior. O corpo doído bem que merecia aquele “abuso” daquela cama confortável, depois de tantos dias de dormida na palha fria dos potreiros. A cama era até melhor do que a que usava em Pisa. Relutou um pouco, mas finalmente levantou-se, já desacostumado de tanto conforto. Desceu, encontrando pela primeira vez a família do bom homem. Nada de estranho ou de curiosidade lhe disseram ou perguntaram, sendo a sua presença ali o fato mais natural do mundo. Fora promovido a Fratello, que acabava de chegar do Norte. O anfitrião saíra cedo para o trabalho, ficando a família incumbida de fazer as honras da casa. Deram-lhe de comer e não permitiram que Danilo os ajudasse em coisa alguma. À noite, o italiano voltou do trabalho, dizendo-lhe que estava cuidado do seu problema, que ele tivesse paciência pois ao final tudo sairia bem. Andara sondando a melhor maneira de conseguir fazer a sua travessia, confidenciando-lhe que não era a primeira vez que se empenhava naquele ofício. Na casa, já haviam estado outros em situações parecidas com a sua. Mesmo tempos depois de finda a guerra, o Gaúcho jamais conseguiu compreender bem qual era a daquele italiano. O pedreiro jamais deixou transparecer se fazia aquilo por conta de pertencer a alguma organização especializada, ou se fazia tudo por simples altruísmo. De modo algum, o homenzinho parecia agente na retaguarda alemã, tal era a simplicidade no modo de agir, uma vez que lutava com todas dificuldades comuns aos italianos. Vivia do produto da hora no campo de sua casa, comia do macarrão que sua esposa fazia a partir da escassa farinha de trigo que conseguia. Ou o homem era um agente, um perfeito artista numa perigosíssima missão, ou então um abnegadíssimo samaritano a enfrentar o risco com toda a sua família, numa coragem indescritível. Era certo que se os alemães ou os fascistas descobrissem estar ali escondido um inimigo, as consequências seriam terríveis: fuzilamento sumário e queima de toda a propriedade da família. Resumindo: de uma maneira ou de outra, o pedreiro era um homem de grande valor na sua existência heroica e anônima.

O nosso herói (uma espécie de anti-herói, na verdade) ficou com aquela família durante uma semana, tempo suficiente para recuperar-se a fim de enfrentar o restante da jornada. Enfim, foi informado de que atravessaria o rio naquela tarde, ora em que os trabalhadores voltavam para casa na margem sul do rio Pó, fazendo a travessia. Era a ocasião mais propícia. Então, vestiu sua roupa velha e, munindo-se de uma broa, despediu-se de todos e foi com o italiano até o ponto de embarque. O bom homem lhe dera uma bicicleta velha e enferrujada, que precisava de lubrificação, uma máquina bem usada. Chegaram à prancha de embarque e tomaram lugar na balsa. Nada havia a temer, já que o pessoal da fiscalização já estava instruído pelo italiano. Com umas garrafas de grappa ou conhaque, tudo se conseguia daqueles alemães já cansados de tanta guerra. Por precaução, porém, durante a travessia, o pedreiro fez com que as botinas de Danilo ficassem ocultas debaixo da bicicleta e do seu longo casaco; isso evitaria a curiosidade dos outros italianos. Em pouco tempo, estavam todos na margem sul do rio. Caminharam juntos até o primeiro povoado, onde tiveram que se separar e cada seguiria seu caminho. O bondoso italiano – mais um na saga de Danilo – fizera tudo o que lhe era possível fazer, ou – quiçá – cumprisse a sua missão. Não seria exagero se se descobrisse que aquele homem era um coronel ou outra patente do serviço secreto. A verdade é que nunca se soube ao certo. Deixou o Gaúcho. Ele nada mais poderia fazer. Dali em diante, nosso herói estava entregue novamente à sua própria sorte, que, por sinal, era muito boa.

Estava só outra vez. Montou na bicicleta e começou a pedalar rumo a Ferrara, sempre na estrada principal. O intransponível rio Pó ficara para trás. Pedalou durante algumas horas, e em breve os músculos se ressentiram do exercício, pois não estavam acostumados à longa caminhada, não a pedalar. Parou para descansar à beira da estrada. Danilo percebeu que estava bem próximo ao front e o movimento de militares alemães era intenso. Dispôs a redobrar o esforço, descansando o mínimo possível. A cada momento, esperava ser descoberto, porém, enquanto isso não acontecia, descia para o sul. Se o prendessem e nada de pior lhe ocorresse, provavelmente seria levado para um campo de concentração muito ao norte, e assim teria de escapar, mas a possibilidade de ser preso não lhe agradava, pois teria de voltar e fazer o mesmo passeio, e – pior – já era o pagamento. Um homem com esse espírito merecia o êxito que obteve. Foi pedalando e, contra as expectativas pessimistas, conseguiu novamente atravessar uma cidade, Ferrara, quartel-general do exército alemão, sem que nada de ruim lhe acontecesse. Não tardaria a chegar a Bolonha, que nessa época ainda se encontrava relativamente afastada do front, porém não tão distante. Essa era última cidade importante no seu itinerário de fuga.

O tempo passava e o Gaúcho começava a perder as esperanças de encontrar os homens da organização de fuga que o Inglês mencionava nas aulas. Até então, tudo o que conseguira fora com o seu próprio esforço e a presença em seu caminho da boníssima gente que o acolhia durante a dura jornada. Alcançou Bolonha, adotando os mesmos processos truncados usados desde que a artilharia antiaérea alemã atingira seu avião. Vagou pela cidade por uns dias e, nada conseguindo de excepcional, decidiu que o melhor seria seguir. Deixou Bolonha, então. Percebeu que não era mais possível continuar andando em direção à frente de combate, pois as estradas estavam intensamente vigiadas, havendo fiscalização constante de documentos das pessoas que transitavam nas proximidades. A única rota possível era seguir para oeste, e assim o fez. Com a bicicleta, tomou aquela direção. Na estrada, cansado, ia pedalando a velha e pesada máquina quando foi ultrapassado por uma carroça puxada por dois animais. Recordando seus tempos de garoto na propriedade do seu Gilberto Moura, e, principalmente, porque o cansaço era intenso, com mais esforço conseguir alcançar a carroça e morcegar o veículo, deixando-se rebocar a ela agarrado pelo braço esquerdo. O dono da carroça não se opôs à presença de Danilo, e tudo ia às mil maravilhas. Se continuasse assim, certamente alcançaria o dia do pagamento, que já estava ali. Aconteceu, porém, de a carroça ultrapassar um soldado alemão, que também de bicicleta seguia para a mesma direção. O soldado, vendo o Gaúcho pendurado do lado oposto da carroça, considerou que a ideia não era má. Pisou com mais força e os alcançou, morcegando ele também a carroça do lado direito. O brasileiro e o alemão, fuzil à bandoleira, não trocaram palavra alguma e continuaram agarrados à carroça por muito tempo. Essa indesejada presença desagradou bastante o nosso herói, mas nada podia fazer. Não largou do reboque por conta disso, já se conformando com a presença casual do inimigo, e, de quando em vez, olhava de soslaio para ele. Numa dessas olhadelas, observou algo que constituiu a razão essencial para desistir da carona vantajosa: a manga do caso subira com a posição do braço esquerdo, deixando a descoberto o seu relógio, que Danilo, pela primeira vez, percebia em seu pulso. Sentiu medo. Se o alemão visse o relógio, estaria perdido. Mais do que a botina, um relógio – objeto caro naquela época – não se adequaria à imagem de um italiano pobre. De outro lado, não poderia abandonar de repente o meio de transporte numa estrada em campo aberto, sob pena de isso parecer estranho e despertar suspeitas por parte do tedesco. Naquele dilema, eis que vislumbrou adiante um cruzamento. Seria ali que abandonaria a carroça sem que isso parecesse repentino.

Chegando ao cruzamento, largou do reboque dobrando à sua direita da maneira mais natural possível, como se ali realmente fosse o lugar a que se destinava. “Grazzie!” – deu-se ao exagero de gritar ao carroceiro, que lhe respondeu: “Prego!”. Pedalou ainda por algum tempo nessa estrada secundária, e quando viu que era suficiente, já fora da vista da carroça, retornou à estrada principal, já sua velha conhecida. A noite o alcançou no descampado, nenhuma casa, nenhuma vila, nada. Dormiu ao relento naquela noite, tendo apenas como anteparo uma carroça abandonada.

Foi ilusão imaginar que poderia dormir sossegado, malgrado o frio de lascar. Aproveitando o escuro da noite, os militares germânicos enchiam a estrada com suas viaturas em comboios barulhentos, que, com faróis apagados, transitavam vagarosamente. O Gaúcho pôde testemunhar o valor da camuflagem inimiga, e mais tarde pôde dar informações sobre o movimento deles durante a noite daquelas estradas. Amanhecendo, aqueles caminhões desapareciam como que por encanto, ocultando-se nos potreiros das fazendas ou debaixo de redes de camuflagem, tudo bem profissional. Rezou para que aparecesse um Beaufort inglês e fizesse ali uma faxina naquela estrada. Nada disso, porém, aconteceu e teve que passar a noite sobressaltado com o movimento barulhento daqueles caminhões a diesel do grande inimigo.

Continua…

L.s.N.S.J.C.!

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