A SAGA DO TENENTE DANILO NA ITÁLIA!

Continuação da postagem de 9 de dezembro de 2023.

DEVIDO à missão de que se ocupava na ocasião – metralhamento de composições ferroviárias num entroncamento fortemente defendido –, deve ter saltado à baixa altura, o que não encorajava a prognósticos muito otimistas acerca de sua caveira. No 1º Grupo de Caça, sentiu-se a falta do Gaúcho, mas a guerra continuava, se não fosse ele, teria sido um outro do Grupo. Não havia tempo para lamentações. Talvez por respeito, por sentimento, ou qualquer outro motivo, suas anedotas não eram mais contadas, mas lembradas com um cunho de saudades. Sua voz estridente não era mais ouvida na garagem, e mesmo os sargentos, cabos e soldados da Garagem, seção de que Danilo era o chefe, sentiram a falta de suas ordens aparentemente gritadas, na maneira característica que todos davam risadas – na ausência dele, obviamente. Ele não voltou naquela manhã de inverno. O que teria acontecido? Era a dúvida de todos. Os dias se passaram e logo o pessoal se conformou, e a alegria foi até maior quando da sua volta, após a fuga excepcional, que só ele mesmo conseguiria realizar com êxito. Estava com 19 quilos a menos.

Nesta fotografia, Danilo ainda como aspirante-a-oficial

Muito distante de sua base, em Pisa, o Gaúcho foi abatido por armas automáticas. Treviso dista um espaço aproximado entre as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Saltou a baixa altura e, como Deus também é gaúcho, chegou bem ao solo, nada mais lhe acontecendo do que um corte na língua, que, longe de ser uma infelicidade, ao longo do caminho que faria lhe seria de grande utilidade, representando a diferença entre a liberdade e a prisão ou entre a vida e a morte. 

Conta ele que, ao chegar ao chão – o que aconteceu muito rápido, pois o paraquedas mal se abriu e ele sentiu o tranco, logo em seguida tocando o solo, mordendo ele a língua nesse momento –, ficou um tanto desorientado, sem saber qual atitude a tomar. Vencida a indecisão inicial, resolve colher rapidamente o paraquedas, afastando-se do local da queda. O campo em que caíra estava coberto de neve. O trigo já havia sido colhido e a palha estava empilhada para servir de alimento ao gado durante aquele inverno. Encontrava-se em campo aberto, não sabendo o que fazer. Recordou-se – disse ele mais tarde – das aulas do Inglês, agente de inteligência britânico, e ainda sem saber o que fazer ocultou-se no primeiro monte de palha, pois alguém se aproximava. Era um italiano, humilde camponês, aparentemente inofensivo. Entretanto, naquela situação, não podia confiar em ninguém. Tinha que ter certeza. O Inglês havia ensinado assim. O homem aproximou-se, e Danilo ficou na indecisão de lhe dar um tiro ou conversar com o italiano.

Decidiu-se pela última alternativa – para sua felicidade. Esperou. O italiano falou-lhe primeiro. Ainda desconfiado, e com muito medo, dispôs-se a ouvir o italiano, que na sua simplicidade, no isolamento em que vivia, nunca poderia imaginar o quanto esteve próximo de levar um tiro no rosto. É necessário que se faça uma ressalva para louvar a coragem, o desprendimento desinteressado destes camponeses italianos, que, mesmo sem ignorar as consequências – os alemães não faziam mistério das represálias e castigos que infligiriam a todos que ajudassem os aliados –, ofereciam a sua ajuda a estranhos, da mais nobre maneira, dentro de suas limitadas possibilidades. O nosso gaúcho estava na presença de um destes heróis anônimos. Este lhe perguntou, na sua maneira simples e substancial: “Inglês ou americano?” O Índio prontamente respondeu: “Americano”. O bom homem não entrou em pormenores. Escondeu-o mais ainda no monte de palha, cobrindo-o todo. Disse-lhe que voltaria mais tarde, retirando-se.

Horas amargas deve ter passado o Índio, sozinho, debaixo daquela palha úmida, com frio e muito mais medo, sem sossego de espírito, aguardando o que viria depois, mas que poderia ser o pior. Não teria sido melhor ter passado o recibo no italiano? Naquela solidão escura e umedecida do monte de palha a cabeça não o deixava em paz por um só instante. Estava desesperado, pensando que não mais suportaria a situação. Nessa luta íntima, o tempo foi passando e havia sempre uma esperança, a que, como bom jogador de pôquer – ele considerava todos os ângulos –, mantinha-o sempre com um restinho de moral. Foi justamente este resquício de moral que o fez suportar aquelas primeiras horas terríveis. A palha molhada o incomodava profundamente, porém o desconforto moral era bem maior. Se fosse outro, pensaria com raiva nas poesias que tanto falavam do odor úmido dos campos. Mas ele nunca tomou conhecimento da existência de poesias. Com muito frio e medo, foi suportando a noite inteira. Sentiu-se enregelado e o corpo começava a se ressentir da posição forçada debaixo da palha, mas tudo isso era bobagem – contou ele – comparado com o estado de ânimo de que se sentia possuído. Confessou que esteve próximo a entregar-se ao desespero, desistindo de uma vez. Nessa indecisão, aguentou valentemente a noite fria. O Gaúcho era especial de verdade. Valente, simples, inconsciente de sua força moral, enfrentou tudo aquilo com uma galhardia inigualável, com uma naturalidade nata, só compreendida pelos que com ele privaram. Ao contar a sua história, depois de voltar ao Grupo, sentia-se que estava sendo honesto no seu relato, sem preocupações de se fazer herói.

A madrugada o encontrou entorpecido, sonolento, abatido pelo cansaço, porém não vencido. Como havia lhe prometido, o bondoso italiano voltou, trazendo-lhe comida. Danilo alimentou-se como pôde, já que o apetite, nas condições em que se encontrava, não era grande. As primeiras 24 horas tinham passado e ele não havia sido descoberto. Se o Inglês sabia mesmo das coisas, a possibilidade de fuga do Gaúcho aumentara um pouco. Mais animado, o Índio convenceu o camponês a lhe arranjar roupas civis, em troca das suas. O pobre italiano, embora relutante, acabou concordando e ficou com a roupa de voo de Danilo. Ele, então, vestiu a roupa velha e surrada que conseguiu, conservando, porém, as calças de gabardine de lã e as botinas, peças do uniforme, pintando estas de preto, com a ajuda do italiano. Ficou também de posse de sua bolsa de fuga, algum dinheiro italiano, da bússola, fósforos, medicamentos especiais, além dos mapas da região, estampados em seda. É óbvio que, sendo abordado e revistado pelo inimigo, toda essa tralha denunciaria sua posição de aviador-militar. Fez mais: distribuiu o que restou da bolsa de fuga pelos bolsos de sua “nova” roupa. A imprudência de Danilo foi mais além: sem pensar muito nas consequências, conservou o relógio de pulso, contrastando com a sua nova condição de italiano pobre. Mas nem pensou naquilo, que fez por força do hábito, somente bem mais tarde notou que conservava o objeto no pulso. Agora, de boné velho na cabeça, tal qual o costume da terra, e com sua famosa barba azulada de um dia de idade, poderia ele passar por qualquer italiano da Calábria. Sua tez morena e seu otimismo invulgar davam a Danilo tal pretensão.

Metido em tal indumentária, iniciou sua fuga, algo original, sem precedentes, totalmente fora dos manuais para situações de guerra. Danilo, com ajuda dos mapas e muito mais com a ajuda do bondoso e temerário italiano, orientou-se quanto à região em que se encontrava. Voando, era tudo mais fácil do que em terra firme – afirmou mais tarde o Gaúcho. Não dispunha de nenhuma referência à mão. O Inglês (do serviço secreto britânico) instruíra em suas aulas como se deveria proceder em situações como a que se achava o militar brasileiro. Sim, ele devia seguir o caminho mais próximo de gente amiga, ou dirigir-se às montanhas, onde se sabia existirem os partisanos, ou ainda tentar alcançar a fronteira suíça e lá ficar internado. Isso era o certo a fazer. Contudo, não se preocupou com esses detalhes sem importância. Diferenciado, Danilo nem ao menos cogitou qualquer dessas possibilidades; meteu rumo ao sul, que era o de Pisa, onde estava baseado o Primeiro Grupo de Aviação de Caça, sob o comando do mano Nero Moura. Ademais, estava nos primeiros dias de fevereiro e a gaita sairia lá pelo dia 28 do mês. Sim, era crucial chegar antes da data do pagamento, pois, do contrário, seria considerado desaparecido, extraviado ou coisa assim. E aí seria o diabo para receber aquelas liras. Danilo, de volta, contou ser essa a sua maior preocupação. Armando Coelho, por meio do qual chegamos a esta história, acreditava sinceramente ser verdade, tal o jeitão peculiar do Gaúcho, sendo as reações dele todas diferentes. Difícil existir outro igual.

Guiado pelo italiano, dispensou a intricada rede de estradas secundárias, pois estas não constavam do mapa de fuga e, de bicicleta – o camponês levou-o no quadro – alcançou a estrada principal que o levaria a Padova. Sinceramente comovido pela excepcional ajuda, despediu-se do bom homem, que desejou a Danilo felicidades. “Alguri!” – quis beijar o Gaúcho à moda da terra, mas ele não consentiu. “Homem, não!”. Para encurtar a despedida, prometeu ao italiano que, terminada a guerra, voltaria para o rever. Queria ver o vestido feito de paraquedas que a irmã do camponês iria fazer, tão logo os tedescos saíssem da Itália. Mais tarde, cessado o conflito, Armando Coelho foi testemunha de que o Índio cumpriu a palavra, tendo voltado para ver o vestido de seda branca, que fizera parte do seu paraquedas, levando significativa ajuda em alimentos. Dessa vez, deixou-se beijar à maneira daquela gente simples. Quando prometera voltar para rever o amigo, Danilo estava distante de pensar que isso realmente se realizaria.

Estava agora sozinho, na estrada principal que ia para Padova e em pleno dia. Tudo exatamente ao contrário do que o Inglês recomendava fazer, mas isso em nada lhe preocupava. Afinal, ele tinha suas cartas: tinha jeito de italiano e a língua mordida no salto de baixa altura, detalhe que disfarçaria o sotaque estrangeiro.

Continua…

L.s.N.S.J.C.!

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