A SAGA DO TENENTE DANILO NA ITÁLIA!

Continuação da postagem de 13 de dezembro de 2023.

AMANHECEU. Abatido pela noite mal dormida e faminto, Danilo tomou seu rumo, até aquele momento não sabido. Seguindo em frente, alcançou uma aldeia. Esperava ali ser encontrado pela organização. Nada. Os métodos ingleses eram falhos – ia pensando. Não foi encontrado naquele dia, nem no outro. Decidiu assim que tinha de resolver por si mesmo o problema, como de outras vezes. Deixou aquela estrada e seguiu em direção à frente de combate, próxima dos montes Apeninos. À tardinha, chegou a uma pequena cidade, que não conhecia e nem tinha tempo para verificar nos mapas de fuga – era Vignole, pequena cidade ao sul da Via Emília. De estômago vazio, deu várias voltas pela cidadezinha, nada conseguindo. Ninguém o achava. Desanimado estava o Índio e com vontade de desistir, mas ao mesmo tempo sem coragem para tal. Seria submetido a um terrível interrogatório por parte do serviço de inteligência tedesco e, se abrisse o bico, sobraria para muita gente – um desastre. Mas a fome aumentava, já não sabendo o que fazer. Quase ao desespero, eis que avistou uma senhora num segundo piso de um daqueles sobrados altos, muito comuns na Itália. Ela serenamente fazia tricô. Nada indicava que ela o ajudaria, pois a casa era muito grã-fina para partisanos. O Inglês frisara bem que era mais provável encontrar ajuda ente as pessoas mais simples, que, pela regra geral, constituía a maior parte dos antifascistas ou da resistência italiana. Ainda que não fossem, as pessoas mais elitizadas tinham de ser fascistas por necessidade, pois, do contrário, perderiam seus empregos. Pela aparência, aquela senhora nada tinha de partisana; bem ao contrário: a casa era uma das melhores da cidade.

A fome do Gaúcho era, porém, maior que a lógica, o bom senso e as razões do Inglês. O faminto olhou longamente para aquela senhora, cujo nome era Fiorella. Chamou-a e pediu comida. Levantou a pesada bicicleta ao ombro, subindo os dois longos lances de escadas que o levariam ao segundo piso da casa. A porta da moradia já estava aberta, e dona Fiorella numa expectativa que ele, em são consciência, não era capaz de compreender; era como se ela já estivesse à sua espera. Desconfiado, no seu trôpego italiano, dirigiu-se à senhora com o mesmo enredo de costume. Bem ou mal, ela conseguiu compreender, mais tarde revelando-lhe que o italiano dele havia sido o melhor que ouvira até então por parte de “quem” a procurava. Ouviu toda a história de forma cortês, porém exigiu ao final que ele revelasse a verdade. Desconcertado, Danilo contou-lhe a verdade, mantendo somente a farsa de ser estadunidense e não brasileiro, pois a sua real nacionalidade soaria inverossímil, por desconhecida da maioria daquela gente. Que Danilo esquecesse toda história por ele inventada, pois não precisaria mais dela daí em diante.

Deu-lhe para comer o macarrão habitual e um colchão de palha, pois isso era tudo que podia oferecer, porém muito mais do que o Gaúcho esperava. Disse-lhe Fiorella que podia ficar ali até o dia seguinte, e que à noite um parente chegaria do trabalho. Não deu mais detalhes.  Enfim, o Índio nada mais esperava do que comida. Sentia-se capaz de passar mais outras noites ao relento frio do inverno, de forma que o pernoite veio como um acréscimo. No colchão de palha, então, dormiu profundamente. Estava muito cansado para pensar, até mesmo para desconfiar daquela acolhida inesperada.  Na manhã seguinte foi acordado pelos seus novos protetores: dona Fiorella e seu primo. Ele queria ouvir outra vez a história de Danilo – a verdadeira, não a engendrada. O homem não interrompeu a narração. Ofereceu-lhe até mesmo um cigarro, daqueles lambidos, com uma dose de fumo suficiente para matar um cavalo, mas que o italiano tirava enormes tragadas sem esforço, com prazer, e que ele, o gaúcho, apesar de não ver um cigarro havia muito, não conseguia aspirar nem um pouquinho. Fumou, porém, como lhe foi possível.

Urra!!! Finalmente, foi encontrado. Encontrado, enfim!

Mesmo sem o admitirem, ele foi encontrado por aqueles dois italianos. Ficou decidido que ele permaneceria com os dois até o dia seguinte, quando o levariam à casa de uns outros “primos”, que eram partisanos. Ali sempre o próximo é que era partisano.

Na sua segunda e última noite na companhia daqueles parentes italianos, para encobrir e explicar a sua presença naquela casa, houve uma reunião a que compareceram os vizinhos para festejar a chegada e a passagem do sobrinho que tivera a casa destruída por bombardeio em Ferrara, e que, em consequência, ficara mudo. Em sua honra, comeu-se muita castanha assada e bebeu-se muito vinho tinto. Ficou bêbado, recolhendo-se ao seu colchão. Sua retirada foi desculpada e compreendida pelos presentes, que concordavam penalizados com o que lhe acontecera. Ao amanhecer, estava ainda azedo de tanto vinho, mas mesmo assim seguiram de bicicletas ao encontro dos primos, que eram partisanos. Assim, o nosso colega foi entregue aos cuidados da organização que tanto ouvira falar – ele que já estava descrente que existisse. O italiano deixou-o nas mãos daquela gente especializada, voltando ao seu ponto de atividade, onde sua tia voltara a fazer o tricô que, pela sua função, devia ter sido o mais comprido da guerra. Como o leitor amigo já compreendeu, a organização compunha-se de pessoal altamente especializado, que conversava estritamente o essencial e fazia muitas perguntas, e, para segurança de seu trabalho, não devia cometer enganos.

Tomaram todas as informações necessárias, confirmaram as datas, ouviram toda a história desde a queda, quiseram saber os mínimos detalhes, o que contrariava muito o nosso herói, que na ânsia de atravessar a linha de combate julgava os homens exageradamente enrolados. Já lhes mostrara a sua chapa de identificação que consigo conservava, já lhes dissera quem era, de onde viera, o que voara, qual o objetivo naquela manhã em que fora abatido; enfim, tudo o que realmente acontecera. Ingenuamente, sem avaliar o que conseguira realizar, não podia entender o porquê de tantas perguntas e confirmações. Para ele, a sua aventura tinha sido perfeitamente realizável, mas os homens da organização estavam meio descrentes, naturalmente por ele ter contrariado basicamente, nos mínimos detalhes, tudo que a boa técnica aconselhava em matéria de fuga.

Os seus interrogadores estavam admirados com os processos utilizados pelo gaúcho. Para os ingleses, nada daquilo poderia ter acontecido. O manual dizia justamente o contrário… Após muitas consultas e investigações pelos canais competentes, o Gaúcho foi dado como legítimo, dissipando-se as dúvidas.

Nessa mesma noite foi transportado para outra estação de espera, bem mais avançada para o front, onde outros em igual situação já o aguardavam. Havia militares estadunidenses, britânicos, italianos e agora um brasileiro. O único que a organização conhecera até então. Eram oito ao todo. Davam um tempo para se refazer fisicamente para a próxima mudança de estação, que seria gradativamente mais avançada.

Em deslocamentos sucessivos, feitos à noite, moveram-se para a última estação, na fralda da cordilheira. Por alguns dias, lá permaneceram esperando uma ocasião propícia, ignorada por eles. Eles – o pessoal da organização – nunca lhes diziam coisa alguma, por segurança. A ocasião esperada, propícia, chegou numa noite de violenta nevasca e frio cortante. Era a neve que aqueles homens incompreensíveis esperavam. Os guias italianos chegaram, formando o grupo. Misturando-os com algumas famílias italianas, que – tudo assim indicava – se prestavam àquelas aventuras em troca de remuneração. Não era a primeira vez que o faziam, pois não demonstravam preocupação alguma.

Com duas pílulas contra cansaço – dopados mesmo –, iniciaram a caminhada sem paradas. Em ritmo contínuo, galgaram os Apeninos por trilhas de cabras, íngremes, sempre em fila indiana. As quedas e escorregões eram frequentes, mas não podiam parar. Assim, no rigor de uma nevasca intensa, quando as sentinelas, premidas pelo frio, relaxaram a vigilância, conseguiram cruzar aqueles picos escorregadios, gastando catorze horas de caminhada sem descanso. Ao romper do dia seguinte, seus esforços foram coroados de êxito. Na mesma manhã, descansavam na frente aliada, entregues ao serviço de inteligência britânico, agora devidamente uniformizados. Foram separados, então. Não mais encontrou os militares dos Estados Unidos, nem os do Reino Unido, que, com ele, atravessaram as montanhas. Descansado, lavado, barbeado, bem alimentado, foi interrogado longamente pelos oficiais britânicos, que anotaram todas as informações fornecidas Danilo, posteriormente consideradas como as mais completas trazidas por um fugitivo naquela frente. Quanto à sua história, foi ouvida com muito interesse por ser ímpar naquele departamento, jamais, porém, poderia ser utilizada para ensinamentos futuros, por constituir uma quebra geral, quase absurda, de tudo aquilo que eles ministravam, baseados em estudos e estatística.

Condecorado por Salgado Filho, ministro da Aeronáutica

Acabado o longo interrogatório, o gaúcho, muito aborrecido com os dois dias que passava em companhia dos interrogadores ingleses, foi finalmente devolvido ao nosso convívio em Pisa, numa tarde fria, como qualquer outra naquele hotel esburacado em que vivíamos.

Os rapazes do 1º Grupo de Caça festejaram a volta de Danilo Marques Moura, esvaziando o que restava das rações de uísque, logo substituídas pelo horrível conhaque italiano, que fez o mesmo efeito. Em meio a forte ressaca, encerrou-se o capítulo mais heroico do 1º Grupo de Aviação de Caça, realizado por aquele gaúcho simples, que, sem pretensões, tornou-se merecedor de toda a admiração dos comandantes aliados que o conheceram, de seus colegas e de seus poetas e fazedores de anedotas.

(Adaptado do texto de Armando de Souza Coelho, que atuou no Teatro de Operações da Itália com 62 missões realizadas. Era 2º tenente-aviador R/2. Revista Força Aérea nº 30, março de 2023, pp. 52 a 59)

E este é um de nossos muitos heróis, numa classificação literária, uma espécie de anti-herói. Herói de guerra, mas herói anônimo, um dos muitos heróis esquecidos nas páginas do tempo da História do Brasil. Claro, se fosse norte-americano, isto há muito lhe teria rendido um belo filme, sucesso de bilheteria. Mas nasceu brasileiro.

Vou mais:

Seu irmão, Nero Moura, primeiro comandante do Grupo de Aviação de Caça, também herói de guerra, um herói que comandou outros heróis, nem sequer foi promovido na ativa aos postos de comando. Somente foi ao posto de brigadeiro na Reserva Remunerada por força de legislação.

Nós, brasileiros, precisamos valorizar mais a nossa gente, as nossas coisas, a nossa história, reconhecer os nossos verdadeiros heróis.

L.s.N.S.J.C.!

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