DEPOIS que Zualil, o viajante desconhecido, conta a história cujo título é “Aprende a escrever na areia”, oferece-se para regar os canteiros do jardim de seu anfitrião, o narrador deste capítulo e de outros. Observa ele que as plantas estavam secas e definhando. O anfitrião, porém, não consente.
Adianto que o narrador, fiel ao senso comum, persiste, a partir das aparências, em fazer o pior juízo das pessoas, diferente de Zualil.
… Continuação da narrativa postada em 24jun2020.
Por Malba Tahan
CONVIDEI-O a voltar comigo à sala; abri a terceira janela e encostei a porta. No centro do tapete deixei o vistoso narguilé de prata, que refulgia como uma joia. Voltando-me para o meu hóspede num tom não isento de cerimônia, disse-lhe:

— Tem paciência, meu amigo. Ficarás sozinho por algum tempo. Vou preparar nossos manjares.
E encaminhei-me para o compartimento, na ala esquerda da casa, onde se achavam o armário com os comestíveis, os cestos com frutas e as caixas de farinha e cebola. Retirei um prato com peixe frito, bolos de nozes, pão fresco, limões e tâmaras cristalizadas. Acendi o fogo e pus água para ferver. Nesses pequenos afazeres e indispensáveis arranjos, demorei-me algum tempo. Quando cheguei de volta à sala, trazendo a bandeja com licor, tive a imensa surpresa de encontrar o meu hóspede em companhia de um desconhecido. Achavam-se ambos refestelados aconchegadamente, de pernas cruzadas, e conversavam como velhos amigos, gesticulando e bracejando com remetidas fantasiosas. O recém-chegado era magro, de cabelos grisalhos, olhos mortiços e fisionomia abatida. Trajava-se com extrema modéstia. Em sua túnica esfiapada multiplicavam remendos de vários feitios.
Vendo-me aparecer, Zualil, sempre atencioso, disse ao companheiro:
— Eis aí, ó respeitável taleb, o nosso bom e generoso amigo, dono desta hospitaleira vivenda.
E, a seguir, voltando-se para mim, acrescentou com meio sorriso, inculpando-se da presença do intruso:
— Espero que não te aborreças com este novo hóspede. Chamei-o para servir-nos de companhia na refeição. Ele ia passando e eu o convidei. Fiz mal? Aprovas o meu gesto?
E procurava ler no meu rosto a impressão de suas palavras.
Fiquei estarrecido na escada com a bandeja de licor na mão. O egípcio pusera para dentro de minha casa, sem me consultar, o primeiro beduíno que avistara da janela, cruzando a estrada. A continuar daquela maneira, dentro de poucas horas a minha casa estaria transformada numa turbulenta hospedaria ou num caravançará enxameado de forasteiros. Entretanto, cumpria-me o dever de homologar o convite feito. Não vi, no momento, solução mais oportuna para o caso. Disse, pois, com urbanidade convencional, encarando-o com tênue sombra de dissabor:
— O convidado de meu hóspede é sempre bem-vindo.
E, a seguir, com expressões corriqueiras, saudei o desconhecido a quem Zualil concedera o tratamento de “respeitável taleb”:
— A paz sobre ti, ó forasteiro. Aqui partilharás do sal de minha toalha.
Retribuindo a amistosa saudação que eu proferira meio constrangido, o recém-vindo respondeu (a sua voz era metálica mas não me pareceu desagradável):
— Queira Alá cobrir com suas inestimáveis bênçãos os dignos moradores desta casa. Que a misericórdia do Onipotente afaste deste lar acolhedor as tentações e erros.
E, à guisa de apresentação, ajuntou risonho e mesureiro:
— Chamo-me Iezid Chakalid e exerço a árdua proifissão de mestre-escola1. Tenho por hábito não recusar os convites atenciosos e as ceias apetitosas.
— Pois confirmo e reitero o convite formulado pelo meu amigo Zualil. — declarei — Consentes, ó taleb, em tomar parte em nosso repasto?
— Com o maior prazer! — anuiu sem cerimônia o mestre-escola — sinto-me profundamente honrado com o vosso convite.
Momentos depois distribui sobre rica toalha os diversos pratos que havia cuidadosamente preparado, desde os bifes de carneiro com cebolada até as pastas açucaradas, feitas de amêndoas e canela.
O mestre-escola não se fez de rogado. Devorou, com invejável apetite, todos os acepipes que lhe foram oferecidos e, durante o largo tempo que durou a refeição, não cessou um só instante de tagarelar, declamar e discutir.
Lamentou o destino do sobrinho mais velho que se casara com uma dançarina; arengou sobre as plantas que afirmara conhecer em seus menores segredos; discorreu por conceitos religiosos e remédios capazes de curar, em dois dias, a sarna de um camelo; dissertou sobre pedras preciosas e também sobre a maneira mais segura de se empregar a bússola no deserto. Falou, com extraordinária eloquência, do maravilhoso tanque existente no Paraíso, segundo a crença dos muçulmanos:
Omitiremos aqui a longa narração do mestre-escola, que discorre sobre preceitos e crenças da religião islâmica.
-*-*-
Finda a refeição, preparou-se Zualil para partir. Vestiu a túnica, ajeitou o turbante, prendeu ao ombro o albornoz e ocultou o punhal sob a faixa.
— Ainda é cedo — declarei medianamente cortês, vendo-o pronto para seguir viagem.
— A jornada que empreendo é longa — respondeu-me com certa melancolia. — Longa e fadigante. Preciso partir. Quero, porém, retribuir de qualquer forma a generosa hospitalidade que recebi nesta casa. Ofereço-te, meu amigo, três coisas igualmente preciosas. Mas, dessas três coisas, só poderás escolher uma. As três coisas que te ofereço são: um segredo, um conselho e uma lenda. Vamos! Dize-me: que preferes ouvir?
Fitei-o cheio de assombro. Aquele homem singular pretendia pagar as gentilezas e atenções que recebera em minha casa com a moeda mais desvalorizada do mundo: segredos, lendas e conselhos! Qualquer outro, em minha situação, diria ao forasteiro: “Que me importam as tuas lendas, os teus segredos ou os teus conselhos. Mal avisado vai quem se preocupa com tais baboseiras. Dispenso o teu pagamento. Podes seguir o teu caminho que eu nada mais desejo de ti”. Julguei, entretanto, indelicado de minha parte tratá-lo assim. Disse-lhe, pois, meio sério e meio risonho:
— Não há motivo algum para hesitar na escolha. Acabas de pôr à minha disposição um segredo, um conselho ou uma lenda. Que faria eu com o segredo? Nada. Tenho em meu poder centenas de outros que não me proporcionam a menor vantagem e deles não colho um dinar de juros. Guarda, pois, contigo o teu segredo. Não o aceito. Quanto ao conselho, julgo-o mais despiciendo ainda. É a mais comum e amenos valiosa das moedas correntes. Qualquer pasteleiro ignorante, em troca de uma fava seca, oferece-nos uma infinidade de juízos edificantes. Os livros que se amontoam pelas bibliotecas estão repletos de advertências que ninguém segue e recomendações que ninguém ouve. Ora, que faria eu com um conselho a mais a perder-se no tumulto de meus pensares? Prefiro, portanto, a lenda. Aceito-a e desejo ouvi-la.
— Julgo muito acertada a escolha — opinou com entusiasmo o mestre-escola. — A justificação que a precedeu foi magnífica. Vamos ouvir a lenda adorável e profunda que esse nobre amigo vai narrar!
E ajuntou pesaroso:
— Que pena não termos aqui dois ou três músicos para acompanhá-lo!
— Iallah! — acudiu risonhamente o meu hóspede. — Que pressa é essa? A lenda que pretendo contar-te, como retribuição pelas boas horas que aqui passei, intitula-se “As sete pontas do quadrado” e é uma das histórias mais assombrosas do mundo. Deveria ser narrada para uma multidão que compreendesse, no mínimo, 5.439 pessoas2! Repara bem: essa lenda notável, o maior tesouro literário do mundo, deveria ser ouvida – repito – por 5.439 pessoas! Sei, porém, que esta casa não comporta os 5.439. Por esse motivo, estou disposto a fazer uma concessão toda especial. Contarei a lenda logo que possas reunir aqui, nesta sala cinco ouvintes.
Iezid, o mestre-escola, riu gostosamente.
— Pela glória de Salomão! Que extraordinária condescendência! O nosso ilustre e eloquente amigo Zualil concede o privilégio excepcional de narrar aqui, para cinco convidados, a lenda que deveria ser ouvida por 5.439 pessoas! Foi notável a redução feita no total exigido.
— Torna-se, pois, necessário convidar mais três pessoas? — insisti com bom humor.
— De certo que sim — confirmou Zualil — vai procurar pelos arredores, ao longo da estrada, no caravançará junto à ponte, nas casas vizinhas, três conhecidos teus e traze-os aqui. Logo que os cinco estiverem reunidos, darei início à lenda.

Pela segunda vez assaltou-me o desejo de despedir o hóspede sem lenda e sem mais conversa. Que capricho tolo! Exigir que o dono da casa saísse a procurar pela vizinhança três pessoas que estivessem, naquela hora da manhã, disposta a ouvir uma narrativa fantasiosa. O melhor seria optar pelo conselho e abandonar a lenda.
Continua…
- Professor;
- O número é produto de 777 x 7.
L.s.N.S.J.C.!
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