MALBA Tahan!

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O viajante desconhecido

UMA tarde, lembro-me muito bem – corria sobre as terras quentes do Iraque o mês do Babilelaval – uma tarde, achava-me a fumar descuidado à porta de minha casa, observando as andorinhas que diagonavam o céu, quando de mim se acercou um viajante desconhecido. Suas vestes modestas não denunciavam desmazelo; do rosto, manchado pelo pó das estradas, transparecia certa nobreza. Pesava-lhe sobre o ombro esquerdo um fardo escuro apertado por uma correia amarelada e, pendente da cintura, um punhal recurvo. Estacou, respeitoso, a pequena distância. Inclinou ligeiramente o busto e proferiu (a sua voz deixava filtrar ligeiro sotaque africano) o salã dos peregrinos cairotas: 

— Seja Alá o teu guia e o teu amparo! Que a alegria brilhe sempre nos olhos de teus filhos e a paz resida perene em teu coração! 

Encantou-me a delicadeza daquele forasteiro. Suas palavras tinham a harmonia de uma fonte sussurrante. É pessoa finamente educada (pensei). E tudo nele pareceu-me distinto e sóbrio, desde o turbante desbotado até as babuchas enegrecidas pela lama do caminho. E, emprestando a minha voz todas as cambiantes da simpatia, retribui a sua saudação:

— Alá te proporcione uma boa noite. Precisas de meu auxílio? Imenso será o meu prazer em ajudar-te! — E num gesto largo, sob o escudo da modéstia, aditei risonho: — A minha desvalia é grande, mas o meu desejo de servir é muito maior! 

O viajante descerrou os lábios num sorriso de intenso júbilo. Lia-se-lhe no semblante abatido o drama da fadiga insofrível.

— Alá sobre ti e ao redor de ti! — respondeu com certa cerimônia — Aceito, de bom grado, o teu generoso acolhimento. Sinto-me, realmente, exausto e desejaria repousar aqui algumas horas, antes de prosseguir jornada!

— Esta casa é tua, ó irmão dos árabes! — confirmei, sem hesitar — aqui terás (Alá seja louvado!) um pouco de pão, água fresca e tâmaras doces.

O cairota (devia ser um cairota!) com sincero suspiro de alívio, com bagas de suor a cair do rosto, arriou o fardo, infletiu os braços e agitou o ombro dormente, como faria um carregador na feita ao dar por findo o estafante carreto. Tomei-o com simplicidade pelo braço e conduzi-o para o interior de minha casa. Convidei-o a sentar-se e obsequiei-o com reconfortante merenda: pão, bife de carneiro e coalhada fresca.

— Estás só? — perguntou-me circunvagando o olhar por todos os recantos da sala numa observação muda, mas certamente indiscreta e intencional. Percebi que toda a sua atenção convergia para um narguilé de prata que rebrilhava perto da porta entre um pequeno alaúde e dois escudos persas. Aquele narguilé era o adorno mais precioso de minha casa. Recebera-o, seis meses antes, do generoso xeique Husseyn,  em troca de belo e espirado poema dedicado especialmente aos guerreiros de sua Kabila. Um turco, amigo e sócio de meu irmão, dissera-me que a peça devia valer mais de mil dinares-ouro. Era facetado na base e…

— Estás só? — instou o hóspede vendo-me distraído, e interrompendo o rumo incerto de meus pensamentos.
Sim, eu estava só. Inteiramente só. Minha esposa, na véspera, havia seguido – juntamente com os filhos e duas servas – para o oásis de Beni-Soad, onde moravam alguns parentes nossos. Eu ficara, naquele isolamento, retido por alguns afazeres inadiáveis. Dentro de uma semana, concluída a tarefa que me prendia, deixaria, também, a casa e iria repousar nas montanhas, longe da vida tumultuosa e do calor de Bagdá.
E, enquanto desfiava aqueles informes, tinha minha atenção presa à pessoa de meu hóspede inesperado. Em dado momento, num gesto vagaroso, arrancou do turbante, estirou indolente as pernas, acomodou o busto forte sobre larga almofada e decaiu em silêncio. 
Pude, então observá-lo melhor. Era um homem relativamente moço, mas já cruelmente maltratado pelos revezes da vida. Ligeiramente calvo, tinha olhos claros e fisionomia inteligente e expressiva. Enegrecia-lhe a mão esquerda, até a altura do punho, estranha tatuagem, cuja forma ao primeiro olhar não pude distinguir.

Deixou-se ficar algum tempo em silêncio, os olhos semicerrados, em completo alheamento, absorto num cismar sem fim.

Decorrido largo espaço ergueu-se de súbito, como se despertasse de um sonho, e interpelou-me com insofrida vivacidade:

— Não ouves, meu amigo? É a voz do muezin! Vamos à prece!

Pus-me à escuta. O hóspede não despertara enganado. Era realmente chegada a hora do mogreb. Que imperdoável distração a minha! O apelo melancólico do almohaden rolava pelo ar e se perdia ao longe entre as tamareiras sem dono que orlam o deserto:

— Vinde à prece, ó muçulmanos! Vinde à prece! Alá é Deus e Maomé, o enviado de Deus! Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Alá!

Fizemos em dois instantes as abluções do ritual. Lavamos ligeiramente as mãos até a altura dos cotovelos, os pés, o rosto, as orelhas e o pescoço.

almohaden, muito ao longe, clamava pelos fiéis. E as suas santas palavras chegavam-nos aos ouvidos com a suavidade de um eco:

— Vinde à prece, ó muçulmanos! Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Alá!

O dia declinava na serenidade e na paz. A noite se anunciava batendo as palmas do crepúsculo. O Sol, como um garoto travesso, espionava a Terra por cima do muro sombrio das montanhas.

— Façamos a prece lá fora — sugeri ao meu hóspede desconhecido. 

— Não, não — recusou com uma veemência que me surpreendeu — Oremos aqui mesmo, nesta sala!

E interrogou-me, num assomo de impaciência enquanto enrolava apressado o turbante:

— Tu, que és o dono da casa, orienta-nos! De que lado fica a Cidade Santa?


Respondi estendendo o braço em direção à segunda janela, à esquerda:

— É exatamente neste rumo!

— Julguei que ficasse para ali — tornou, com seriedade, o egípcio — na direção daquele narguilé.

Até na hora da prece esse homem está com o pensamento no meu narguilé – pensei. E uma onda de desconfiança negrejou-me o coração.

O cairota (eu insistia até aquele momento em supô-lo cairota) apanhou uma lança e colocou-a recostada à parede, com a ponta voltada para baixo, junto à janela que eu indicara. A linha ideal, passando pela ponta da lança iria até Meca, a cidade de Deus.

— Vamos à prece! — disse, dando por findos os preparativos.

Ajoelhamo-nos e erguemos os braços para o alto:

— Alá, Clemente e Misericordioso! Louvado seja o Onipotente criador de todos os mundos!

E o estranho viajante, a meu lado, com a voz repassada de impressionante e comovente unção, pôs-se a orar:

“Quero, Senhor, ser como sou, vosso crente fiel e submisso, no sofrimento e na dor, no tédio e na alegria, na doença e na saúde, na miséria e na fartura, na vida e na morte! Não me enjeiteis, Senhor, ainda que vos tenha enjeitado e ofendido; não me lanceis de vós, Senhor, ainda que vos tenha repelido e negado; não me deixeis de todo, sem o vosso misericordioso amparo, endurecer em meus erros e meus pecados!

“Tirai, Senhor, de nossos corações toda suspeita maldosa, toda ira injusta, toda ambição reprovável, toda desconfiança insultuosa! Apiedai-vos, Senhor, de todos os que imploram a vossa misericórdia. Apiedai-vos e socorrei, socorrei, Senhor, aqueles que nas angústias da vida e nos desesperos da dor, necessitam de vosso indizível amparo e de vossa bondade infinita. Alá, Clemente e Misericordioso…”

Ajoelhamo-nos e erguemos os braços para o alto:  — “Alá, Clemente e Misericordioso!”

Ergueu-se. Estava finda a prece. A noite pousara lentamente na terra como uma águia fadigada. Acendi dois lampiões de azeite.

O viajante aproximou-se de mim olhando-me muito fixo e abraçou-me com vivo transporte de alegria. A seguir pôs-se a pular pela sala sacudindo os braços e gritando:

— A baraka! A baraka!

Ao vê-lo naquela atitude tomei-o por um desassisado, ou melhor, por um louco. Segurei-o com energia pelo ombro:  — Que é isso? Que aconteceu contigo?

Respondeu-me com estranha agitação no rosto:

— Pois não sabes? A baraka! Tens agora a baraka!

— Vamos! Explica-te. Onde está a baraka?

Afastou-se alguns passos de mim, cruzou com solenidade os braços, e interpelou-me com grave entono:

— Quero que me respondas: sou ou não, em tua presença, um desconhecido?

— Sim — confirmei — para mim não passas realmente de um estranho. Não sei o teu nome; desconheço o teu passado; ignoro os teus planos de vida, as tuas inclinações e os teus predicados.

— Pois bem — prosseguiu tranquilo o cairota, retomando o fio de sua explicação — sempre que um homem, estando sozinho em sua casa, recebe um hóspede desconhecido e faz em companhia desse estranho, sob seu teto, a prece do mogreb, adquire uma proteção especial de Deus. Essa proteção constitui a baraka mais valiosa que um crente poderia desejar. E esse é precisamente o teu caso. A baraka atuará sobre o teu destino e fará com que a tua vida seja inteiramente transformada. Vais entrar em largo período de prosperidade, paz e grandes venturas. Verás satisfeitos os teus sonhos; realizados serão todos os teus desejos. Só um pedido quero formular agora: quando estiveres no apogeu de tua glória, com a força e o poder nas mãos, atira-me a corda de tua proteção para que eu possa também subir e prosperar. Preciso do teu amparo! Imploro-o desde já!

Ao ouvir aquela explicação que a surpreendente solicitação rematava, sorri incrédulo. Não sou muito inclinado a aceitar essas superstições pueris; seria, porém, indelicado contrariar o meu hóspede. Fingi, pois, que admitia como certas todas as suas previsões e disse-lhe com ar agradecido:

— Está bem, meu amigo. Asseguro-te que terás a minha proteção. Imponho, apenas, uma condição. Quero que me contes a tua vida.

O viajante não se fez de rogado. Sentou-se diante de mim, cruzou as pernas e depois de rápido instante de meditativo silêncio, assim começou: 

Continua


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