DURANTE os três decênios em que estivemos na Força Aérea Brasileira muitos acontecimentos presenciamos e de tantas outros travamos notícias por meio das redes sociais da época, que funcionava de boca a ouvido. Chegamos a ver capitão desafiar major para o desforço físico e coronel com a ficha individual mais suja que pau de galinheiro de fazer inveja ao praça mais alterado do quartel.
De todos os episódios extraordinários, pitorescos, divertidos ou fora de série, lembramo-nos de alguns em especial envolvendo autoridades. Passo então a registrá-los sob pena de caírem no vão do esquecimento.
Uma vez, em palestra do comandante da aeronáutica, tenente-brigadeiro Bueno, vimos com os olhos que a terra haverá de comer um dia um sargento receber um lance (uma bronca, uma mijada, um esporro) dessa autoridade. Era uma manhã e o local era o cine-teatro Brigadeiro Camarão, que fica próximo ao Colégio Rego Barros.
O novinho teve a coragem — ou falta de juízo — de dormir na palestra do brigadeiro. O comandante-mor, talvez por ocultar uma conjuntivite ou qualquer outro problema ocular, palestrava usando óculos escuros — ou seria apenas um ardil, pois a autoridade simplesmente “filmava” a audiência enquanto falava.
“Você aí, que está dormindo”, gritou Sua Excelência, “Você acha que eu vim de Brasília até aqui para alguém dormir durante a minha palestra?”.
Foi nessa hora que o infeliz sargento dorminhoco se viu como o centro das atenções, eis que todos viraram o olhar para a sua direção para saber quem era. Inclua-se os comandantes de unidades e outros oficiais superiores, a fim de conferir se o militar em questão era ou não seu subordinado.
Nesse mesmo dia o dorminhoco foi devidamente catrapado.
Soubemos de outro episódio.
Foi numa das vezes em que o presidente Lula visitou Belém, tendo ele e dona Marisa se hospedado no hotel de trânsito dos oficiais da guarnição.
Foi o chefe do Pessoal, na época capitão Omar, quem contou-nos os detalhes. Depois de um almoço à base da exótica gastronomia paraense, a saber, maniçoba, pato-no-tucupi, vatapá, acompanhados de sucos de taperebá e muruci; como sobremesa, açaí e musse de cupuaçu, além de outros quitutes da região, grande chance de passar mal quem não estava habituado à peculiar culinária amazônida.
Não deu outra.
Depois que toda a comitiva presidencial já estava de saída, o chefe do Pessoal já mencionado, pessoalmente, propôs-se a realizar vistoria nas dependências do hotel-cassino, incluindo apartamentos, refeitório e sanitários. Numa das toaletes, o oficial observou que este fora frequentado por alguém de muita pressa, porque a natureza não deu tempo suficiente para que o usuário chegasse ao assento. Era um fedor dos diabos, além de, visivelmente estar lá, para quem quisesse ver, o produto do almoço no chão, na parte externa do vaso e nas bordas deste, formando uma espécie de trilha.
Quem teria feito aquela merda?
“Parece que alguém andou abusando da maniçoba”, falou o capitão Omar, dirigindo-se ao segurança que ainda guardava o local.
“Acho que foi o Ciro Gomes, chefia!”, respondeu o militar, com uma espécie de sorriso à Monalisa, como quem conta uma confidência. “Eu vi o ministro entrando aí às pressas”.
É claro que o autor da proeza podia ter sido qualquer um. Mas, Ciro Gomes, ministro de Lula, era a personagem mais conhecida entre eles. Ficava mais divertido atribuir a culpa ao célebre político.
Mas não é sobre Ciro ou Lula que vamos ocupar o restante desta página, pois não era a primeira vez que o T1 recebia um presidente da República.
Pouco mais de duas décadas atrás o mesmo hotel de trânsito, o T1, foi cenário de uma situação divertida, ao tempo que embaraçosa e constrangedora, envolvendo um outro presidente da República, o extinto general João Batista de Figueiredo, o derradeiro presidente do regime militar.

Era o ano de 1980. Ou teria sido 1981? Isso, porém, não vem ao caso. Por razões políticas que desconhecemos, o general-presidente encontrava-se em litígio com o governador do Pará, que, contrariamente aos preceitos da caserna, era apenas um coronel, o Alacid da Silva Nunes. Devido a essa razão, Figueiredo e sua comitiva hospedou-se no T1, já que o governador ignorava a sua presença em Belém.
O comandante da Base Aérea de Belém era o coronel-aviador Próspero Púnaro Barata Neto, oficial que marcou para o bem (segundo uns) e para o mal (na opinião de outros) a história daquela unidade militar. Naquela época era o costume de serem nomeados para comandantes de base aérea os coronéis já muito antigos, quase prontos a serem promovidos. Era o caso. Mas, na realidade, Barata já tinha idade para ser brigadeiro ou até mesmo major-brigadeiro. Ocorre que o oficial teve seu tempo de serviço interrompido por conta de um episódio de que tomou parte pouco mais de vinte anos antes, somente sendo reintegrado à FAB no governo Jânio Quadros.
Em 1959, esse mesmo oficial participou de um episódio histórico. Nesse tempo o capitão Barata envolveu-se numa rebelião (uma tentativa, ao menos) que pretendia, se bem sucedida, derrubar o governo Juscelino Kubistchek. Barata Neto e seus correligionários de ideais, os tenentes-coronéis Haroldo Coimbra Veloso e João Paulo Burnier, já são mortos. Podemos elogiá-los à vontade, pois.
Veloso era então já reincidente na prática rebelde contra JK, que, num gesto magnânimo e bondoso, o anistiara após a frustrante rebelião histórica conhecida como A Revolta de Jacareacanga. Inconformado, Haroldo Coimbra Veloso junta-se desta vez a outros udenistas (que também eram lacerdistas, eduardistas…), entre militares e civis, incluindo os dois oficiais citados, para, mais uma vez, tentar derrubar o governo de Juscelino num episódio chamado de A Rebelião de Aragarças, que durou somente 36 horas, de que poucos historiadores se ocupam. Apesar de pouco a História registrar, ambos os episódios nós destacamos aqui no BLOGUE do Valentim.
Mas voltemos ao Figueiredo e ao Barata Neto, então comandante da Base Aérea, naquele Círio de Nazaré de 1980. A exemplo de Barata, Veloso e Burnier, o general não mais está entre os vivos, por isso, podemos também elogiá-lo à vontade, como dizia Machado de Assis.
Nessa tarde, com a agenda livre, foi programado um coquetel na área da piscina do T1 em homenagem à autoridade máxima do país, que honrava Belém e a Aeronáutica com a sua presença. O brigadeiro comandante do Primeiro Comando Aéreo, demais oficiais-generais da área de Belém, a totalidade dos oficiais superiores da guarnição, além de as principais autoridades civis federais, todos acompanhados pelas respectivas madames esposas, se faziam presentes em trajes informais.
É evidente que, do baixo clero, obrigatoriamente — e aí por dever de ofício — se encontravam também presentes motoristas, seguranças, taifeiros e a Banda de Música. A vida divide a humanidade em duas: os que usufruem e os que servem; os que tocam e os que carregam o piano; a casa-grande e a senzala.
Banda de Música?
Sim. Não raro os militares músicos em ocasiões como essa eram solicitados a demonstrar sua arte, mormente nessa tarde em que o mandatário máximo visitava pela primeira vez o Estado do Pará. Ademais, Barata Neto, ainda que muito caxias, conservador, sangue azul e militar rígido, com seu inseparável cachimbo, apreciava muito o trabalho dos componentes dessa subunidade, tendo, inclusive renovado e ampliado toda a instrumentação musical, atendendo a uma reivindicação antiga. Em contrapartida, a Banda, em sua administração, era, por conseguinte, frequentemente convocada. Em tais ocasiões, além da música, o uísque, a vodka, a gelada, ou mesmo a manguaça rolavam soltos.
Banda e Rancho possuíam agenda cheia, portanto.
Naquela tarde ensolarada de outubro estava lá, à borda da piscina, Figueiredo em trajes sumários. Rodeado por oficiais-generais, ministros e o coronel Barata, o presidente, entre uma dose de uísque e outra, degustava uvas, como a lembrar a imagem de um imperador romano ou uma espécie de semi-deus.
Depois de o suboficial Mirabeau, mestre da Banda, comandar a execução de algumas músicas populares, com ênfase às da cultura regional, era a vez de alguns músicos brindarem o excelentíssimo com os respectivos talentos artísticos, cada um com seu instrumento musical em apresentação solo.
Entre eles havia artistas de elevada qualidade, dos quais queremos destaca o talentoso S1 Benjamim. A maioria dos militares da Banda se chamavam assim: Amós, Mozaniel, Daniel, Ezequiel, Miqueias, Ozark, Davi, Zaqueu, Josué…
Chegando a sua vez, Benjamim aproxima-se à distância respeitosa do presidente e passa a exibir seus dotes. Com seu flautim executava as notas mais melodiosas que só o extraordinário talento de raros artistas era capaz de apresentar. O músico, como efeitos especiais, levava o flautim ao ouvido esquerdo, em seguida ao nariz, logo depois ao ouvido esquerdo… Mostrava trejeitos tais que passavam ao público a ilusão de que as notas musicais que todos ouviam, não se eram na verdade produzidas pelos lábios do músico.
Profundo silêncio reinava entre a plateia, que, embevecida, não perdia um só segundo do show particular que o jovem soldado proporcionava à seleta audiência ali presente.
Terminada a apresentação, Figueiredo, então, voltando-se ao anfitrião, se sai com essa:

“Barata, esse teu militar toca pra caramba. Parabéns!”
O comandante, que a essa altura já havia ingerido uma quantia para lá de razoável de uísque e de outros líquidos destilados, assim responde ao presidente:
“Presidente, esse é o Benjamim. Ele toca por tudo o que é buraco. Ele toca até pelo cu!”
Nisso, entre surpreendidos e chocados pela resposta pouco convencional do coronel, muitos baixaram a cabeça, outros viraram o rosto para o lado, e as mulheres, ruborizadas, não sabiam onde se meter de tanta vergonha. Eu ouvi isso mesmo? O presidente vai mandar prender o coronel! Produziu-se suspense e curiosidade à espera da reação do general Figueiredo.
Que nada.
Figueiredo, também já ébrio, não ligou a mínima. Em vez disso, pediu a um de seus auxiliares que anotassem o nome do Benjamim. O praça, que meses antes havia feito exame para sargento, no mês seguinte teve sua promoção publicada em boletim da DIRAP, posto que o coronel Barata findasse a carreira como coronel.
L.s.N.S.J.C.!
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